sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Aconteceu...Tanto entusiasmo para nada!

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Estava cheio de curiosidade, pela primeira vez ia passar a meia-noite a pé, a passagem do ano, a entrada do ano novo. Um enorme entusiasmo, mas... é que ele não sabia o que era o ano.
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E porque ninguém tinha percebido essa lacuna e lhe tinha dado uma explicação para o assunto, ele teve de usar da imaginação. E começar a pensar...
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O ano...será uma pessoa? Mas que tem de andar muito depressa, pensou ele, quando ouviu dizer que havia países onde ele já tinha entrado.
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Mas que esquisito, entrou novo...será da minha idade? Vou finalmente ter alguém com quem brincar? e entra novo em cada país e a tantas horas diferentes, não cresce? interrogava-se.
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Podia não ser uma pessoa, podia ser um monstro, pensou assustado, lembrando-se da Sra. Maria, a porteira, que um dia tinha falado no perigo do fim do mundo, que o ano a seguir era muito pior, e umas palavras que também não sabia o que queriam dizer, tais como crise, inflação e outras coisas assim. Mas se esperassem um monstro, fariam doces especiais? Só se fosse para ele comer e acalmar...
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A tarde foi avançando, caiu a noite, em casa a família estava satisfeita frente à televisão. Afinal, mas que o que será, já que até agora, com excepção de uns doces e de umas coisas que se chamavam passas era tudo igual ao que conhecia?!
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O sono era muito, quase nem conseguia manter os olhos abertos. Sentado no sofá, foi deixando cair a cabeça e adormeceu profundamente. O pai, com cuidado foi pô-lo na cama.
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E de manhã acordou, igual ao que sempre tinha sido. Fim-do-ano? Ano Novo? O que será? Talvez para o ano descubra!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Aconteceu...Foto

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................................Foto - Magda

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Poema - Jorge Gomes de Miranda

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MOLA DE ROUPA

Conservei-me afastada do estendal
durante algum tempo.
Sofro de vertigens, por isso
intimidava-me olhar para baixo,
o pátio vazio, restos de flores secas.
Um prédio com dez andares
e ele tinha logo que viver no último,
tendo como horizonte o mar
de terraços e antenas parabólicas.

Quando, chegado com a roupa
da máquina de lavar,
pega em mim,
de suas mãos eu deslizo para o chão.
Apressado, em vez de me apanhar
imediatamente, escolhe outra;
no final, atira-me para o cesto
de verga.

Não é que seja particularmente ardilosa,
mas verdade seja dita, preferia ser
mola de rés-do-chão,
dessas que faça sol ou chuva
sempre prendem a roupa numa corda
estendida no pátio.
O destino quis-me feita de plástico,
com um coração inclinado à melancolia.
Tenho, no entanto, como divisa
antes quebrar que torcer.

Sonho com o dia em que nas mãos da criança
serei um comboio.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Aconteceu...uma maldade feita a crianças

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Durante as férias grandes, os primos iam passar uns dias a casa dos avós. .
Um dia foram com os avós passar o dia a uma quinta. Tão diferente da vida habitual da cidade! Muito espaço para brincar, e umas capoeiras com galinhas, pintos e coelhos.
Com as duas mãos em concha e com muito cuidado, pegavam nos pintainhos amarelos, depois nos coelhos, tão fofos como os bonecos de peluche com que brincavam.
De volta para casa dos avós, cada um trouxe um coelho, com que brincava como se de um amigo se tratasse.
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Um dia acordam com uma má notícia. Um coelho tinha morrido, informou a avó. Ficaram tristes e choramingaram.
Dias mais tarde foi outro coelho, e passado uns dias o último também desapareceu.
Qualquer coisa fez com que os primos começassem a desconfiar, teriam comido os coelhos? E com horror confirmaram, que por sentido prático mas com insensibilidade lhos tinham servido à mesa. Tinham mesmo incorporado os amigos peludos!
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Zangaram-se muito com a avó.
E durante anos nenhum deles conseguiu voltar a comer coelho.
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Outro fim - depois do acontecido as crianças começaram "A negligênciar os estudos e tornaram-se vagabundas. Conta-se que se embebedavam e partiam vidros."* E nunca mais acreditaram nas avós.
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* in O Elefante, Mrozeck

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Aconteceu...Foto - Entre muros

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..............................................Foto - Magda

domingo, 26 de dezembro de 2010

Poema - Jorge de Sousa Braga

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A ÚLTIMA PINCELADA

Viveu em tempos um pintor que nunca conseguia acabar de pintar uma
ave, fosse ela uma cegonha ou uma garça. Quando se preparava para dar
a última pincelada, ela levantava vôo.

E o pintor ficava muito tempo ainda a persegui-la com o pincel no céu
azul...

sábado, 25 de dezembro de 2010

Aconteceu...Ladrões disfarçados e um Pai Natal amigo do Homem Aranha

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O entusiasmo era evidente, as crianças mal aguentavam o tempo que o jantar da consoada estava a demorar. Queriam era a hora das prendas que o Pai Natal ia trazer, como estavam acostumados.
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A noite estava muito fria. A televisão tinha estado a transmitir notícias do resto da Europa, aeroportos fechados, aviões em terra. A brincar alguém comentou Oxalá o trenó do Pai Natal tenha conseguido vir. As crianças ficaram inquietas, Mas se não vier...quem nos dá as prendas? Continuaram à espera, as horas passavam e já perto das 23 horas tocam à porta, É ele, é ele! gritam em conjunto, quase como se ensaiadas para um coro.
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Todos se dirigem para a porta, os adultos um pouco preocupados, mas quem poderá ser a esta hora? Espreitaram pelo intercomunicador, bem moderno, com imagem e tudo e ficaram perplexos, uma criança quase recem nascida, embrulhada numas palhas ao colo de uma mulher, mais um homem, um cão e uma ovelha, Por favor, abriguem-nos, pedem, a gruta abateu com o peso da neve, esperamos pelos Reis Magos e mais pastorinhos, mas precisamos de um tecto, isto dito com um tom seguro, demasiado seguro, diremos agora.
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Abriram-lhes a porta, Então não é que em vez do Pai Natal vem o Presépio?! comentam os adultos admirados, e eles entram para a casa, mais os animais, encostam-se à lareira acesa e aquecem-se.
Comem alguma comida que lhes é oferecida, um copo de vinho tinto, o bebé bebe leite, ainda bem que havia um "biberon" nesta casa dizem que à mãe ainda não lhe tinha subido o leite, se é que o viesse a ter, e roupinhas para o aquecer, de repente o casal puxa de umas armas escondidas dentro das roupas e gritam Mãos ao ar isto é um assalto! A família encolhe-se, junta-se a um canto como lhes ordenaram temendo pelo que lhes vai acontecer, enquanto eles remexiam em tudo e enchendo sacos com as coisas valiosas que foram encontrando.
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De repente, e sem que se tenha percebido como entraram, eis que o Pai Natal que aparece, renas e trenó na sala. Com uma teia igual à do Homem Aranha prendeu os meliantes.
Chamada a polícia, foram presos e desmascarados. À porta um "camion" TIR aguardava o produto do roubo. Aquela casa não era a primeira a ser assaltada.
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Posto o que o Pai Natal distribuiu as prendas. As crianças exaustas e assustadas começaram a recuperar, e já há risos e beijos.
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Adeus, adeus, o Pai Natal usa o terraço como pista de aeroporto e ruma ao céu.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Aconteceu...foto - À porta da loja

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..................................Foto - Magda

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Poema - Daniel Jonas

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PECADO CAPITAL

A Vitória de Samotrácia
é mais ou menos a minha história
sentimental: tinham todas um corpo
e asas até
mas pouca cabeça.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Aconteceu...ser mãe é...?

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"Sou muito amiga deles, eles sabem que faço tudo por eles, vivo por eles, para mim não quero nada, modéstia à parte não podiam ter melhor mãe."
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"Menina, então e tu não me ajudas? Vá lá, anda para aqui, não saias, o teu pai não está e eu fico sozinha."
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"O quê, então estas notas nos testes? Fazes-me isso, a mim, tua mãe, a tua maior amiga?! És um bocado ingrata!"
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"Não, não a prendo, mas não acha que me devia fazer um bocado de companhia? É que eu vivo para ela!"
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"Com o pai ela quer pouca coisa, é tudo mãe, mãe, mãe. Mas ele também não sabe ser pai, pensa mais nele que em nós. Eu cá por mim aguento, tenho-os a eles!"
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É difícil aguentar tanta frase de auto-elogio, de dádiva, de sofrimento, de culpabilização de certas mães.
Comportamentos de oposição, até mesmo de agressividade poderão, em certos casos, ser compreendidos nestas situações como tentativas de certos jovens de se separarem psíquicamente dos pais, crescer para a autonomia. Trabalho acrescido!

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Poema - Helder Moura Pereira

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Cheguei a ter medo de te perder,
Tu não chegaste a ter medo.
Este silêncio de já não termos palavras
Ouve-se nas outras palavras que trocamos.
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Miserável mundo nosso e alheio,
Igual ao que todos disseram da sua época,
E pior, porque este vivemos nós
E conhecemos nós, cada um conforme pode.
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Já morreram os ídolos da infância
E os da adolescência vão a caminho,
Sobrevivente é o teu olhar cego
(hoje já só há um dos Righteous Brothers).
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Na feira de velharias uma caixa
Para tabaco com uma rosa verde.
Tem o preço ainda em escudos, uma falha
Num dos cantos, uma pequena cruz de cal.
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Permaneces aí, à lareira, lendo livros vivos
E o seu turbilhão de palavras profundas.
Nunca mais chega o medo de nos perdermos,
Eco um do outro em ricochete de silêncio.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Aconteceu...relações de proximidade

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Esta cena passou-se num bairro de Lisboa onde ainda muita gente se conhece. Num supermercado com espírito e tamanho de mercearia.
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Sábado à tarde, muita gente faz as compras de fim-de-semana. A fila para pagar é grande. Falam entre si.
Olhe, falta um euro e vinte, diz a caixa para uma rapariga brasileira de criança ao colo que, mesmo sem haver caixa especial, todos a deixaram passar à frente. Um euro e vinte, repete a rapariga, sim, traz-me quando cá vier, fica cá o talão, e à frente dela escreve no talão que guarda na gaveta da caixa registadora. Não é bem vender fiado, mas faz-se um jeitinho quando falta um bocadinho. Obrigada, depois trago, diz a rapariga que sai carregada de criança que já trazia e os sacos que agora arranjou.
De repente a porta abre-se, entra uma mulher que diz "Vejam lá isto, para que é que eu fui ao cabeleireiro, e apanho com esta chuva logo à saída!?
Tirasse a cabeleira! diz bem alto e dirigindo-se a ela uma senhora que está na fila, assim não a molhava e em casa punha-a. Risos vários.
Venho cá a ver se me emprestam um guarda-chuva, haverá por aí algum?
Há para aí muitos sacos de plástico, diz outra, ponha um na cabeça!
Ora, e mostra um que tem na mão, isso deu-me a cabeleireira. Mas não haverá por aqui algum guarda-chuva a mais?
Vá lá dentro ver, diz a menina da registadora, vá lá à casa de banho, talvez haja um a mais.
E o seu netinho, deve estar grande, nunca mais o vi por aqui, diz-me a menina da caixa quando chega a minha vez. Lá lhe dou notícias, pergunto pela filha dela, adeus até à próxima, e lá vou debaixo de chuva com o carapuço de anorak na cabeça.
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Este diálogo vivo, nunca poderia acontecer num hipermercado. Os produtos serão um pouco mais baratos, aceito, mas o aspecto humano que se vive por aqui tem o seu preço.
O anonimato e a indiferencia são factores de risco para a saúde mental. Estar contido em qualquer coisa, identificar-se, fazer corpo com, como numa pequena aldeia, é uma sorte que se pode ter!

sábado, 18 de dezembro de 2010

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Poema - Adília Lopes

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OS PAPELOTES
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Nunca choraremos bastante
termos querido ser belas
à viva força
eu quis ser bela
e julguei que para ser bela
bastava usar canudos
pedi para me fazerem canudos
com um ferro de frisar e papelotes
puxaram-me muito pelos cabelos
eu gritei
disseram-me para ser bela
é preciso sofrer
depois o cabelo queimou-se
não voltou a crescer
tive de passar a andar com uma peruca
para ser bela é preciso sofrer
mas sofrer não nos faz forçosamente belas
um sofrimento não implica como consequência
uma recompensa
uma dor de dentes pode comover a nossa mãe
que para nos consolar sem saber de quê
nos dá um rebuçado
mas o rebuçado ainda nos faz doer mais os dentes
a consequência de um sofrimento
pode ser outro sofrimento
a causa é posterior ao efeito
o motivo do sofrimento é uma das consequências
do sofrimento
os papelotes são uma consequência da peruca

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Aconteceu...tanta electrónica, bolas!

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Apesar da crise, li que os pagamentos feitos com os cartões de plástico mantêm valores altos.
As lojas parecem bastante vazias, mas os terminais não se devem enganar.
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Vejo crianças com brinquedos caríssimos, em famílias que certamente têm dificuldades. A sociedade de consumo e os sentimentos de inferioridade "obrigam" a estas "necessidades".
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Está a haver uma dificuldade de se criar brinquedos com as coisas simples que nos rodeiam. Estão desprezados face aos electrónicos. Mas não haverá lugar para todos?
As caricas que faziam de automóveis, e competiam em pistas feitas na terra, as bonecas feitas de trapos que eram tratadas com tanto desvelo como a mais sofisticada Barbie, as espadas feitas de bocados de madeira, caixinhas, molas de roupa, restos de objectos transformados e com os quais um mundo de fantasia era criado, e tantas outras coisas, não preenchiam e divertiam tanto?
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Em certas famílias parece haver uma diminuição do relacionamento e da criatividade. Os jogos que uniam e divertiam as famílias, juntando várias gerações, parecem estar esquecidos. Muitas famílias brincam pouco ou nada com os filhos, as conversas deixam de se fazer, algumas passam os serões e os fins-de-semana agarrados à televisão, e última das minhas descobertas, famílias em que há um computador por pessoa e que estando na mesma casa falam entre si por Messenger!
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Era bom que neste Natal, as famílias pudessem inventar com os filhos qualquer coisa que os junte sem máquinas, descobrir dentro de cada um e em conjunto as potencialidades escondidas, hoje tapadas pela tecnologia.
Gastava-se menos e seria muito melhor para todos!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Poema - Al Berto

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APAGA AS ESTRELAS

No centro da cidade, um grito. Nele morrerei, escrevendo o que a
vida me deixar e sei que cada palavra escrita é um dardo
envenenado. Tem a dimensão de um túmulo e todos os teus gestos
são uma sinalização em direcção à morte.
Mas hoje, ainda longe daquele grito, sento-me na fímbria do mar.
Medito no meu regresso.
Possuo para sempre tudo o que perdi, e uma abelha pousa-me no
azul do lírio e no cardo que sobreviveu à geada. Bebo, fumo,
mantenho-me atento, absorto - aqui sentado, junto à janela
fechada. oiço-te ciciar: amo-te, pela primeira vez, e na ténua
luminosidade que se recolhe ao horizonte, acaba o corpo. Recolho o
mel, guardo a alegria, e digo-te baixinho:
Apaga as estrelas, vem dormir comigo no esplendor da noite do
mundo que nos foge.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Aconteceu...alimentar pela boca e pelo coração

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É curioso e todos já dissemos ou ouvimos uma pessoa dizer, normalmente com funções maternas, que "ela não me come nada". A alimentação, o acto de alimentar é o protótipo da relação humana, a comunicação primeira que é suposto satisfazer a criança e fazer crescer.
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Conhecemos como às reuniões de amigos raramente falta comida, nem que seja um petisco acompanhado de uma bejeca ou um chá com umas bolachinhas.
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As mães preocupam-se quando os filhos não comem o que elas acham ser necessário. Isto do necessário varia muito com a pessoa, há os de grande alimento e os que se satisfazem com pouco. Curiosamente, de uma maneira geral, as mães preocupam-se menos com os filhos que comem demais, embora esteja bastante divulgado o problema da obesidade; e sabemos também que muitos comem para tapar o buraco afectivo que sentem. Sem nada que fazer? umas bolachas; aborrecido? mais outras; irritado? come-se qualquer coisinha que acalma. Mas isto do "apetite" do outro, satisfaz quem cozinha ou alimenta.
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Quase todos temos lembranças de comidas que alguém nos fazia e que sabia muito bem. Há quem tome isso à letra e tente satisfazer esse desejo, "cozinhando como a tua mãe", e se sinta frustrado porque, está bem de ver, não é só a comidinha mas a relação que a ela estava ligada.
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Isto vem a propósito da comida dos hospitais públicos e que é servida aos familiares e aos funcionários, a preços muito aceitáveis, certamente subsidiados, de cantina pública.
Está muitíssimo melhor do que era, eu que a conheço há décadas.
Não pensem que é alguma coisa do outro mundo, mas há sopa, um ou dois pratos fruta ou doce e um buffet de saladas à escolha que vejo ser muito apreciado. A comida é razoavelmente cozinhada e tem apresentação normal.
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E acho isso muito importante, é uma forma de receber e abraçar os familiares que, sabe-se lá com que desamparo, têm um seu filho internado.
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Com os 15% de poupança que a saúde vai sofrer este ano, desconfio que esta comida decente, pode ser uma das primeiras coisas a sofrer um corte.

domingo, 12 de dezembro de 2010

sábado, 11 de dezembro de 2010

Poema - Fiama Hasse Pais Brandão

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O MELRO

Tanto quanto eu, ele ama
as folhas secas, debica-as
e devora-as. Está a procurar
debaixo da face da folha
os vermes. Percorre com apuro
recessos, as nervuras.
Trabalha com amor
para a sua memória.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Aconteceu...memória do elevador dos pratos

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A casa dos avós era grande.
A cozinha era no rés-do-chão, a sala de jantar no 1º andar. Uma por cima da outra. Para não se andar escada acima escada abaixo, havia um pequeno elevador manual transportava a comida e os pratos da copa, junto à cozinha, para a sala. Cá em cima, uma empregada puxava ou segurava a corda, punha ou tirava conforme a tarefa necessária.
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Este elevador era um fascínio para nós, crianças, que com os nossos pais morávamos em andares.
De férias lá em casa, sonhávamos sermos nós os transportados. Imaginávamos um de nós podia ir lá dentro e os outros dois a puxarem ou segurarem o elevador.
Claro que certamente ele dispararia em velocidade e eventualmente bateria com força no chão. Com um de nós lá dentro, com propriedade deveríamos dizer "bater com os ossos no chão".
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Não teremos avaliado o perigo de forma consciente, mas tinhamos alguma noção dele e também do interdito, que não teríamos o apoio dos adultos. Fazíamos então os "preparativos" às escondidas, que não passavam de "preparativos", de fantasias aventurosas.

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Nunca chegamos a descer. Não sei se alguém falou, se foi adivinhação dos avós, mas a regra que o elevador era só para pratos foi explicitada e nunca tivemos coragem de desobedecer.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Poema - José Jorge Letria

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QUANDO EU FOR PEQUENO
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Quando eu for pequeno, mãe,
Quero ouvir de novo a tua voz
Na campânula de sons dos meus dias
Inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
Com a certeza dócil de que só o empedrado
E o cansaço da subida
Me entregarão ao sossego do sono.
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Quando eu for pequeno, mãe,
Os teus olhos voltarão a ver
Nem que seja o fio do destino
Desenhado por uma estrela cadente
No cetim azul das tardes
Sobre a baía dos veleiros imaginados.
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Quando eu for pequeno, mãe,
Nenhum de nós falará da morte,
A não ser confirmarmos
Que ela só vem quando a chamamos
E que os animais fazem um círculo
Para sabermos de antemão que vai chegar.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Aconteceu...7 de Dezembro 2009 - 7 de Dezembro 2010

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"Certos Dias Acontece" faz hoje 1 ano!
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Começou por ser um espaço a que me "obriguei" a vir escrever regularmente, na sequência de ter ficado imobilizada em casa depois de ter partido um pé.
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Se reconheço que pode ser óptimo não ter obrigações e ter o tempo à nossa disposição, também sei
que os marcadores do tempo são organizadores da vida.
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Para o crescimento e para a organização mental de uma criança, as marcas do dia com as suas actividades entre elas é fundamental. Pequeno almoço, almoço, lanche, jantar, aulas, brincar depois de estudar, dormir à noite, pode parecer rígido. Mas é muito importante. Vemos as dificuldades de crescimento harmonioso das crianças com meios familiares desorganizados e onde esta regularidade não acompanha os outros cuidados necessários.
Sabemos, como uma pessoa adulta deprimida ou desorganizada psiquicamente pode não se dar conta que anda com horas trocadas, que se esqueceu de almoçar, de compromissos às vezes importantes.

O blog apareceu assim, num período pouco movimentado da minha vida, e teve também com uma função defensiva, com a sua estrutura alternada e organizada de texto, poema, imagem. E pouco a pouco comecei a divertir-me com ele, a entusiasmar-me e ele começou a fazer parte da minha vida. A minha escrita aqui passou a ser um marco afectivo diário.
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Meses mais tarde o pé sarou, e a minha actividade habitual recomeçou. Mas o blog continuou.
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Os textos são curtos, fruto da minha experiência de vida, viagens, comentários de notícias e aqui e ali com apoio do meu conhecimento profissional.
Os poemas fazem parte de um bocadinho da minha leitura diária.
As imagens, essas tiveram alguma evolução. Diminuíram os vídeos retirados da net, que também exigem mais tempo para a pesquisa, e aumentaram as fotos que são um pouco do meu olhar.
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Pouca gente escreve comentários, embora por outras vias receba algumas opiniões. Mas um contador de visitantes mostra que passam por cá, até ao momento de publicar hoje, 8839 passaram.
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Cá continuarei... enquanto me der prazer!

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Aconteceu...Foto - Núvens negras ganham terreno

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............................................Foto - Magda

domingo, 5 de dezembro de 2010

Poema - Adília Lopes

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Houve um momento
em que deixei de gostar
da minha mãe
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Houve um momento
em que deixei de gostar
do meu pai
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Houve um momento
Em que deixei de gostar
De mim
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Houve um momento
em que deixei de gostar
de ti
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Houve um momento
Em que parti
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Houve um momento
Em que voltei
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Houve um momento em que voltei a gostar de todos
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E todos estão aqui
Mortos
E ausentes

sábado, 4 de dezembro de 2010

Aconteceu...Há quem tenha os pais unidos pela raiva

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Desde cedo que se acostumou a ver os pais discutirem. Eu disse acostumou? Disse mal, devia ter dito ouviu, porque nunca isso se tornou para ele como uma coisa normal.
Insultos, gritos dos pais, e ele a gritar, com as mãos a tapar as orelhas e a pedir que parassem, deixassem de gritar, mas sem que eles o ouvissem.
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Alguns anos mais tarde, ainda ele era pequeno, ouviu uma nova discussão e viu o pai passar por ele, bater com a porta e não voltar nesse dia a casa. Nem no outro, nem no outro... até que a mãe lhe começou a dizer que tinha sido bom, que o pai era muito mau e assim podiam os dois viver sós e felizes.
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E todos os dias lhe lembrava que o pai era mau. Mas ele também se lembrava de jogar à bola com ele, comer algodão doce lá na feira da aldeia, e até armar costelas para apanhar os pássaros. E tinha saudades de estar com o pai...
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Um dia soube que o pai o queria também, para viver com ele. E nova guerra se desencadeou, aqui com Tribunal à mistura. E passou a estar em casa da mãe umas semanas e em casa do pai noutras.
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Era um verdadeiro calvário quando tinha de trocar de casa, um interrogatório completo lhe era feito, tanto pelo pai como pela mãe. E críticas, críticas, críticas. A certa altura sentia-se confuso. Serão para mim? pensava. Como fugir disto, tão pouco crescido que era?
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Muitas crianças vivem esta vida. A raiva que a separação e por vezes nem a constituição de uma nova família deixa de existir entre os pais. Pais unidos pela raiva.
Este ambiente cerca as crianças e destroí-as. Sofrem.
Mergulhados neste caldo raivoso, os pais nem se apercebem como estão a destruir os filhos, a inquinar-lhes a existência actual e a futura.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Aconteceu...a ilusão da fragmentação do Sol

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.............................................Foto - Magda

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Poema - Filipa Leal

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QUARTO MINGUANTE

Os adolescentes da cidade
deitavam-se cada vez mais cedo.

Faltava-lhes o espaço para a náusea
desse lugar diminuto,
desse tédio
que só no quarto a sós
lhes denunciava a paixão.

Os adultos da cidade
deitavam-se cada vez mais tarde.

Não suportavam a náusea
desse lugar diminuto,
desse tédio
que no quarto só
lhes denunciava a solidão.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Aconteceu...precisamos de ser mais simples e sentirmo-nos bem!

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Vivemos rodeados de hábitos, exigências, insatisfações.
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Conheço famílias que me contam que compreendem a insatisfação dos filhos, quando os pais não lhes podem comprar roupas e ténis de marca. Outras crianças querem e exigem, mesmo em famílias a raiar a economia medíocre, computadores e jogos electrónicos.
A insatisfação é mais manifesta quando as famílias se sentem inferiorizadas por não lhos poderem comprar, e vivem isso de forma desnarcisante.
E não há bom senso a que se apele.
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Há tempos vi uma senhora a dar pão a pombos no jardim. Em conversa explicou-me em poucas palavras porque o fazia, "coitados, eu também já passei fome".
Eu que não gosto de pombos na quantidade que há por Lisboa, fiquei sem palavras, compreendi-a.
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Vi um dia destes na televisão, uma aldeia quase cercada pela neve. O isolamento é quebrado pela carrinha do padeiro que com esforço para lá se dirige diariamente. E duas pessoas disseram coisas que deveriam ser ouvidas por muita gente, e cito de cor.
"Com pão e água já ficamos bem" disse uma senhora depois de comprar o pão; e "a minha senhora comprou ontem e ainda lá temos, hoje não é preciso, compro amanhã", disse um homem.
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Nem tanto ao mar nem tanto à terra, mas precisávamos de poder viver assim mais simplesmente.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Poema - Pedro Tamen

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Ardem-me os olhos de tanto me fixar
no presente vivido. Choro
inundando o que nas mãos seguro.
E é com as lágrimas dos dias,
com este pranto reclinado,
que à obra puxo o lustro,
dou brilho à sua vida, à minha.

domingo, 28 de novembro de 2010

Aconteceu...criança pendurada por corda. E por associação Buster Keaton, Pamplinas.

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Deu na televisão uma senhora a fazer descer pela parte exterior de um prédio pendurada numa corda, uma criança para ir, parece, apanhar uma peça de roupa que tinha caído à rua.
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Esta geração conhecerá o Buster Keaton, conhecido por nós pelo Pamplinas? É um actor do cinema mudo, que nunca se ria acontecesse-lhe o que quer que fosse, supostamente cómico. Digo assim porque depois de saber a história pessoal dele, deixei de me poder rir.
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Pamplinas foi uma criança maltratada pelos pais, artistas de circo, e que, para além de tareias, desde muito cedo o obrigaram a fazer exercícios perigosos e muito inquietantes para uma criança. Parece que era obrigado a fazê-los com um ar sério e acontecesse o que acontecesse assim deveria continuar.
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Como actor de cinema, e era ele que fazia também a narrativa, escolhia sempre umas cenas que corriam mal, ridiculamente mal, daí o cómico. Nunca ria...nem chorava. Não expressava emoção nenhuma.
Nos filmes aconteceram quedas graves, com idas ao hospital e lesões extensas. Ele insistia em ser ele, o corpo dele, a fazer aquelas equilibrices, quedas e choques, alguns com traumatismos fortes, visto que chegou a entrar em coma. Nunca quis fazer de conta nem arranjar um duplo, era sempre ele.
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A infância dele marcou profundamente a sua vida. Diríamos que houve uma compulsão à repetição do traumatismo, sem o conseguir resolver.
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E à miúda do prédio, vão salvá-la dum futuro assim? Porque aquilo que filmaram são maus tratos, e aqui a televisão pode ter tido um papel importantíssimo!

sábado, 27 de novembro de 2010

Aconteceu...foto - Fim de tarde de Outono

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...................................Foto - Magda

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Poema - Ruy Belo

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AS IMPOSSÍVEIS CRIANÇAS
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Nesta manhã de Outono dos primeiros frios
mais a caminho da velhice que da minha casa
eu vejo-vos em roda todas a cantar
Impossíveis crianças deixais-me brincar?

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Aconteceu...no século passado, ir buscar água na cantarinha

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Era uma das poucas casas lá da aldeia com água em casa, não da companhia, que ainda não estava instalada, mas com um poço.
No pátio, espaço para onde a casa em L dava, lá estava ele, que não era bem poço, mas uma cisterna grande e larga para baixo, que nunca soube se tinha sido escavada na rocha ou se era mais uma gigantesca pia como as que há por aquelas bandas.
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Cisterna porque recolhia a água das chuvas através de uma canalização montada nos telhados. No início das chuvas essas canalizações eram desviadas e as primeiras águas limpavam os canos. Só as seguintes já eram recolhidas.
Sei que era na Praça da Figueira ou ali perto que se compravam uns peixinhos que faziam da cisterna o seu mar e das impurezas da água o seu alimento.
Tinha uma tampa de folha (ferro?), e um balde com corrente que se mergulhava e puxava. Estava lá um engenho, desactivado, dos que se dava à manivela e a água escorria.
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Logo de manhã cedo, as empregadas, que na altura se chamavam criadas, iam encher as várias bilhas, que ficavam na cozinha e na casa de banho, onde quer por cima do lavatório e da banheira redonda de folha, um depósito de água era cheio. E havia uma torneirinha que abrindo, deixava escorrer a água como se canalizada fosse.
E porque a cisterna era grande e a casa só temporariamente era usada, a água era distribuida a quem a não tinha e ali a queria ir buscar durante a nossa ausência.
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Apesar deste "luxo" na casa da minha avó, o que eu gostava mesmo era de ir, descalça, com uma rodilha na cabeça onde apoiava um cantarinho, com as outras miúdas buscar água lá longe.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Poema - Herberto Helder

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HÁ CIDADES COR DE PÉROLA ONDE AS MULHERES
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Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
o minha loucura, escada
sobre escada.

MuIheres que eu amo com um des-
espero .fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
Imente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
de sua cabeça
ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Aconteceu...já nem o cartucho de folha da lista telefónica se pode?

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Um país asséptico, é o que se pretende?
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Novembro, mês das castanhas. Um cheirinho sai do fogareiro da mulher que as tem a assar. Meia dúzia um euro, uma dúzia dois euros. Está tudo mais caro, mas aquele golpe na castanha antes de assar ou cozer é muito custoso de fazer. E assadas é na rua, quando o olfacto se liga com a memória e as glândulas salivares se põem a trabalhar.
Depois é o discurso do costume, saber se estão bem assadinhas, ó freguesa, isto está tão mau nas vendas que até já temos tempo de as assar bem. Ok, então dê lá aí umas, se faz favor. A mulher levanta a serapilheira, escolheu-as que eu bem vi, bem contadinhas e estende-me um cartucho de papel kraft pardo, desenhos de castanhas e com letras impressas:
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........................Castanhas
...........A Estalar, Vindas da Brasa!!
........Delicie-se Com a Nossa Castanha
................Preserve o Ambiente
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Reparo que o cartucho é duplo, do outro lado mas colado está um vazio. É para as cascas, explica-me. E nele está impresso:

.........................Castanhas
...................Mantenha a Tradição
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Sinto-me defraudada. Estão a gozar conosco. Mas a tradição não era o cartucho bicudo, enrolado na mão e feito de páginas de lista telefónica?
E preservar o ambiente não é reutilizar?
Na Wikipédia pode ler-se "Papel kraft é um tipo de papel fabricado a partir de uma mistura de fibras de celulose curtas e longas, provenientes de polpas de madeiras macias..." Pense-se o resto.
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Eu recebi esse mail que por aí circula e que mostra como a minha geração escapou aos maiores perigos! Não estava lá mas a tinta das listas telefónicas do cartucho com castanhas deve ser um deles.
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Não há pachorra!

domingo, 21 de novembro de 2010

Aconteceu...Foto - Raízes, ligação e segurança

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............................................................Foto - Magda

sábado, 20 de novembro de 2010

Poema - Augusto dos Anjos

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Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
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Se a alguém causa ainda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Aconteceu...que se pode intervir: criar e aumentar a resiliência, desenvolver a saúde mental

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A ida em anos diferentes aos mesmos sítios permite-nos ter bem a noção da diferença, por vezes superficial. Mas há outras mudanças bem mais profundas que se vão passando nas pessoas.
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No Rio de Janeiro e em São Paulo, há muito poucos bairros sociais. Há nomeadamente na periferia da capital, alguns grupos de prédios de andares, muito altos, sem varandas e pouco apelativos. Depois há uns aglomerados que à primeira vista parecem favelas, mas que por ter arruamentos passaram à categoria de bairros de renda social. E depois há as favelas, construções de 1 ou 2 pisos, sem ordenamento nenhum, que parecem plantadas umas em cima das outras.
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Quem vai observando as favelas por fora, como eu, nota diferença de há uns anos para cá. As casas passaram a ter, muitas delas, telhados de telha, muitos buracos de janela já têm as ditas, de alumínio e com vidros. O crescimento em altura das casas corresponde certamente a melhoria do seu interior. É conseguido à custa dos subsídios que o anterior governo estabeleceu para os mais fracos, economicamente falando.
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Na favela também onde moram muitos trabalhadores e suas famílias, não são só as redes de tráfico de droga como por vezes parece. Era dificil lá entrar e implantar fosse o que fosse. O governo de Lula fez uma distribuição de frigoríficos pelas favelas. Só que nelas não havia electricidade e as ruas e as portas foram-se abrindo para deixar instalar esse equipamento básico.
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Atrás da electricidade, instituições comunitárias e as crianças estão a usufruir disso. Há muito trabalho que lá está a ser feito, com pessoas e sobretudo com as crianças que têm vivências muito traumatizantes e tinham o desenvolvimento parado ou mal dirigido. Equipas diversificadas de técnicos vão fazer crescer as crianças, fazer-lhes chegar a cultura, nomeadamente através da escolarização. Ter outras vivências, é poder pensar-se de forma diferente. É de esperar que uma percentagem delas possam fazer a sua própria nova narrativa, um dia.
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Se a passagem de Boris Cyrulnik, mais uma vez por Lisboa, hoje no Instituto Franco Português, deixou, foi a noção da possibilidade de fazer crescer a saúde mental e a esperança onde às vezes parece não existir. A resiliência, processo tão querido a este médico francês, ensinou-lhe e ele a nós, que se é possível ir desenvolvendo em qualquer idade, quanto mais na infância. É possível recomeçar a vida psicológica e mudar o rumo.
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Ter vivido traumaticamente não é sinónimo de fatalismo. Há que intervir!

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Aconteceu...Foto - Ondas

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...................................Foto - Magda

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Poema - Carlos Queiroz

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LEGENDA
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Toda a gente dizia que ele havia
...De ser, nesta vida, alguém;
.......E a mãe ouvia e sorria,
............Contente de ser mãe.
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O menino cresceu; É hoje um homem;
.......E, embora por alguém o tomem,
Quando o vêem passar, dizem: - Coitado!
...........É um poeta...(um aleijado).

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Aconteceu...que as mulheres podiam fumar

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Na rádio do carro estavam a transmitir uma entrevista a um médico. Não a ouvi desde o princípio, mas falavam do cancro do pulmão e da relação com o tabaco. São entrevistas que fornecem informações que podem ser importantes, por exemplo dos perigos de fumar, embora julgue que todos os fumadores têm conhecimento, ou quase todos.
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Tinha lido recentemente e ali também foi focado, que as mulheres portuguesas estão a ser cada vez mais fumadoras. Ora se hoje o cancro do pulmão é predominante nos homens, no futuro esta situação pode alterar-se.
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E a certa altura, o entrevistador afirma que "era uma coisa boa do fascismo as mulheres não poderem fumar" e estou a citar de cor. Não sei a idade do jornalista nem do médico que não se manifestou em contrário.
Acontece que no tempo do fascismo eu era fumadora. Saltei com aquela afirmação. Não, não era proibido as mulheres fumarem, não senhor!
No fascismo havia muitas proibições em que as mulheres eram penalizadas. Foi o caso das enfermeiras não poderem casar, assim como as professoras primárias numa certa época do fascismo.
Quanto ao tabaco, os portadores de isqueiros tinham de ter licença. Podia-se fumar nos transportes públicos, cinema, circo, em quase todos os sítios. Havia anúncios a marcas de cigarros. Nos programas de televisão as pessoas apareciam a fumar. Havia convite ao fumo!
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Era inconveniente as mulheres fumarem na rua, não por proibição mas por regras sociais retrógradas, em que a diferença entre mulheres e homens era muito marcada. Fumava-se na rua sim, faziam-no as mulheres que se conseguiam libertar dessas imposições.
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Estas pequenas desinformações, "uma coisa boa do fascismo" incomodam-me.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

domingo, 14 de novembro de 2010

Poema (extrato) - Jorge de Lima

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(...)
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Há sempre um copo de mar
Para um homem navegar.
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(...)

sábado, 13 de novembro de 2010

Aconteceu...num taxi, viagem com direito a filme de família

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Ipanema, 17h de uma sexta feira. O taxi pára e perante o destino pedido faz o ar mais chateado, e diz que vai ser a 3ª viagem seguida que faz até lá, que está tudo engarrafado, numa franca tentativa de desistência.
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O trânsito nesta zona do Rio de Janeiro é muito complicado. Enquanto não construírem um metro de superfície ou de underground, ou uma linha de caminho de ferro e só alargarem as vias para os automóveis, nada vai melhorar. A Barra da Tijuca continua a crescer em condomínios em altura, para classe média com carro e cada família tem vários carros.
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O taxista tinha um leitor de vídeo no tablier e resolveu mostrar o do 1º aniversário do filho, o Gabriel. De forma contínua, chata e insistente, foi-nos chamando a atenção para todos os pormenores.
Foi uma festa como acho que não é usual em Portugal. Organizada por uma empresa de eventos, em espaço alugado, um animador, imensos divertimentos, piscina de bolas, trampolim, comida e música. Na sala mesas redondas todas de toalha igual e fitas de laçarote e cadeiras vestidas. E imensa comida que enumerou.
Ele havia carneiros feitos em madeira tamanhos natural, com furos no corpo dos quais saíam paus de algodão doce, simulando o bicho real; bonecos de madeira iguais ao Gabriel, em pé; vimos o fato, o cabelo, da mulher, mais o 1º banho dado pela avó, enfim, a viagem nunca mais chegava ao fim.
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E dizia que toda a vida tinha sonhado que quando tivesse um filho e ele fizesse um ano teria uma festa assim.
Durante a viagem nomeou as suas tias e a avó. É possível que conhecer a infância deste homem tornasse compreensível este desejo, espécie de obsessão.
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Foi uma viagem muito chata! Mas fiquei a conhecer estas festas que nem de telenovela brasileira.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Poema - João Cabral de Melo Neto

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TECENDO A MANHÃ
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1

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Aconteceu...curso com diploma para Pai Natal

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Conheci há uns anos um homem, licenciado e já reformado, de longas barbas brancas, que no Natal participa por prazer em festas de Natal para crianças. Uma forma de ser solidário.
Grande, forte e com aquelas longas barbas brancas que lhe descem pelo peito formando, só precisa mesmo do fato e botas para parecer um Pai Natal "verdadeiro". Depois tem um jeito muito próprio, uma capacidade empática com as crianças, que faz o resto. Ele sabe falar-lhes, sorrir-lhes, tem o tacto de ser mais próximo ou mais cuidadosos na aproximação, e claro, distribuí prendas.

A época natalícia provoca um aumento de empregos temporários.
Um destes dias, no Rio de Janeiro, li num jornal de distribuição gratuita que tinha terminado mais um curso de Pai Natal. Achei um espanto, ele há cursos que não me passavam pela cabeça que existissem! 25 novos formandos receberam o diploma. É o 17° curso de uma escola dirigida por um director de teatro infantil, e que ensina aos alunos " postura, maquiagem, interpretação". Não falava de carga horária, pré aptidões e outras coisas assim. Só dizia que, à semelhança de outros anos, estes recém diplomados já tinham trabalho garantido este Natal e que a procura é tanta que nunca conseguem responder a todos os pedidos.
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O Brasil tem estas coisas, será que também resultava em Portugal?

terça-feira, 9 de novembro de 2010

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Poema - Olavo Bilac

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UM BEIJO

Foste o beijo melhor da minha vida,
ou talvez o pior...Glória e tormento,
contigo à luz subi do firmamento,
contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:
queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
e do teu gosto amargo me alimento,
e rolo-te na boca malferida.

Beijo extremo, meu prémio e meu castigo,
batismo e extrema-unção, naquele instante
por que, feliz, eu não morri contigo?

Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto,
beijo divino! e anseio delirante,
na perpétua saudade de um minuto....

domingo, 7 de novembro de 2010

Aconteceu...somos muito importadores...

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Temos uma grande capacidade de entender o outro. Vamos a Espanha e percebemos o espanhol. Eles a nós, nada. Vamos a Itália e tentamos entender alguma coisa de italiano. Eles, a nós, nada. Vamos ao Brasil e entendemos o brasileiro. Eles a nós, à primeira nada, à 2ª perguntam se somos italianos. Temos de os ajudar e tentar falar abrasileirado. Se lhes dissermos bom dia, sabe onde fica o metro? nada. Temos de repetir abrasileirando Oi môço, porr favorr, o metrô? Joía, obrigado.
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Ouvir falar durante todo o dia é a minha profissão e a linguagem uma das minhas armas terapêuticas.
Reparei já há bastante tempo que os meus doentes, pais e filhos, de uma maneira geral não sabiam conjugar os verbos. Dizem por exemplo, eu disse a ela, ao referirem-se à conversa que tiveram com a professora, eu falei a ele, nas conversas com o filho e outras conjugações estranhas. Dei por mim a falar assim de vez em quando para logo emendar, preocupada com o contágio de quem não estudou muito e lê pouco ou nada bons autores portugueses ou boas traduções.
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No concurso dos Ídolos, ouvi um dos membros do júri dizer para um concorrente que não cantava bem "isto não é a tua praia". Achei estranho, certamente uma nova expressão idiomática, pensei.
Sempre tivemos bichas que se formam enquanto esperamos qualquer coisa, tivemos, porque hoje todos dizem filas, não vá algum brasileiro homossexual estar por perto e ofender-se.
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Será que hoje em dia o português e o brasileiro são mesma língua, ou hoje são línguas diferentes? Uma pancada de chuva é a nossa chuvada, uma dúzia de rissoles são doze dos nossos rissóis, e se for só um será rissole, ônibus em vez de autocarro, celular em vez de telemóvel e tantos, tantos outros exemplos. E não podemos perguntar se estão a perceber, teremos de dizer entender e de preferência entendjer.
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Pois agora ficou muito mais claro para mim! Sabia que muitos nomes das crianças de hoje são influência dos nomes dessas inúmeras telenovelas brasileiras que diariamente entram pelas casas.
Mas também andamos a importar as expressões idiomáticas assim como construções frásicas. A importar do Brasil.
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Português e brasileiro parecem, à parte origem longínqua comum, estarem muito diferentes. Para quê acordar uniformizações?

sábado, 6 de novembro de 2010

Aconteceu...foto - Um brinde à beleza

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.................................Foto - Magda

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Poema - Vinicius de Moraes

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CINEPOEMA
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O preto no branco
Manuel Bandeira
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O preto no branco
A branca na areia
O preto no banco
A branca na areia
Silêncio na praia
De Copacabana.
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A branca no branco
Dos olhos do preto
O preto no branco
A branca no preto
Negor absoluto
Sobre um mar de leite.
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A branca de bruços
O preto pungente
O mar em soluços
A espuma inocente
Canícula branca
Pretidão ardente.
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A onda se alteia
Na verde laguna
A branca se enfuna
Se afunda na areia
O colo é uma duna
Que o sol incendeia.
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O preto no branco
De espuma da onda
A branca de flanco
Brancura redonda
O preto no banco
A gaivota ronda.
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O negro tomado
Da linha do asfalto
O espaço imantado:
De súbito um salto
E um grito na praia
De Copacabana.
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Pantera de fogo
Pretidão ardente
Onda que se quebra
Violentamente
O sol como um dardo
Vento de repente.
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E a onda desmaia
A espuma espadana
A areia ventada
De Copacabana
Claro-escuro rápido
Sombra fulgurante.
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Luminoso dardo
O sol rompe a nuvem
Refluxo tardo
Restos de amarugem
Sangue pela praia
De Copacabana...

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Aconteceu...em viagem, nomes bons para jogos de palavras

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A auto-estrada São Paulo Rio de Janeiro, tem um rígido controle da velocidade, que no máximo é de 120, mas pode uns metros à frente passar a 80 e logo de seguida a 100 km/hora. Há frequentes postos da polícia. Funciona a "lei seca", um copo de cerveja já acusa no aparelho da polícia. Diz que houve franca diminuição de acidentes com estas medidas.
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Atravessam-se extensas zonas variadas, de serra e de pasto agora seco.
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O carro é sobrevoado por bandos de aves de rapina pretas, asas grandes. São urubus, aves necrófilas, que procuram cadáveres para se alimentar.
Nos pastos vêm-se muito gado. Chamou-me a atenção umas vacas brancas, semelhantes às sagradas indianas. Também estas estavam esqueléticas, o que me espantou. São de facto bois nelori, uma raça zebuína, a mesma das indianas. Gostam do calor e dão-se bem por aqui. O gado no Brasil alimenta-se de pasto, e não de ração, e o facto de se estar numa época "entre safra" faz com que agora não estejam prontos para a engorda. Parece que esta raça nunca ficará gorda como outras qualidades de bois, mas que a carne é muito saborosa.
O Brasil é um grande produtor de carne de vaca. Com os inúmeros puns das mesmas, contribui certamente bastante para o aquecimento global.
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Placas para sair da auto-estrada, com nomes de terras vão aparecendo, umas bem portuguesas como Queluz, Resende ou Penedo.
Outras de origem índia como Itaquaquecetuba, Caraguatatuba, Caçapava, Pindamonangoba, Guaratingueta.
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E pronto, toca a jogar à forca e ganhar.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Aconteceu...arte urbana

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...................................Foto - Magda

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Poema - Manoel de Barros

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EXPERIMENTANDO A MANHÃ DOS GALOS

... poesias, a poesia é

- é como a boca
dos ventos
na harpa

nuvem
a comer na árvore
vazia que
desfolha a noite

raíz entrando
em orvalhos...

floresta que oculta
quem aparece
como quem fala
desaparece na boca

cigarra que estoura o
crepúsculo
que a contém

o beijo dos rios
aberto nos campos
espalmando em álacres
os pássaros

- e é livre
como um rumo
nem desconfiado...

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Aconteceu...em viagem, ele há cada história!

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No avião rumo ao Rio de Janeiro, sentou-se a meu lado um homem de meia-idade, aspecto simples e rural.

Ainda estávamos em terra, e toca o telemóvel dele. Ouvi-o atender e surpresa, dar ordens sobre a rega dos tomates e dos pimentos, com pormenor de horário e quantidade de rega.

Manteve o telemóvel ligado e já no ar um novo telefonema e as ordens eram sobre a rega dos pepinos. Confesso que fiquei perdida de riso...e de curiosidade.
Como nenhum tripulante lhe deu nenhuma indicação directa sobre medidas de segurança como o desligar do telemóvel, disse-lhe eu. Ficou aflito e desligou-o, e aproveitou para me contar a sua aventura. Era a primeira vez que andava de avião.


Era de uma aldeia do centro do País e nunca tinha viajado mais do que uns quilómetros em roda da sua terra. Pequeno agricultor, tinha empregado para trabalhar consigo uma brasileira. Aqui falou de uma maneira especial, baixou a voz como se de um segredo se tratasse. Só que ela, na semana anterior, sem aviso prévio e sem que ele percebesse o porquê quis voltar para o Brasil. Disse-me que ela lhe fazia muita falta, tinha quase chorado, implorado para que ficasse, mas ela tinha partido.

Uns dias depois ela telefonou-lhe, arrependida, queria voltar para Portugal, pediu-lhe que ele a fosse buscar. Com o coração aos pulos, dispôs-se a ir, sem hesitar. Arranjou um vizinho que lhe ia tratar de regar as hortas durante a sua ausência. E lá estava ele, já com dois bilhetes comprados de volta para dois dias depois.
Não sabia onde ela se encontrava, só tinha o número do telemóvel. À saída desejei-lhe boa sorte.
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A brasileira tinha-lhe dado a volta ao coração...e à cabeça.
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Quanto aos tomates, pimentos e pepinos, esperemos que o vizinho tenha sabido cuidar.

domingo, 31 de outubro de 2010

sábado, 30 de outubro de 2010

Poema - Ferreira Gullar

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MEU PAI
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meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Aconteceu...há mar e mar, há ir e voltar

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A organização de uma viagem é para certas pessoas, mesmo que sempre prontas para ir, muito complicada. Deixam quase tudo para a última da hora e arrastam-se, em dúvidas, e hesitações sobre o que levar, o que deixar, como arrumar, enfim, é mesmo até ao último minuto.
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Há uns anos, um grupo de quatro amigos, resolveu ir a Paris de camioneta. Como partia às 6h da matina, juntaram-se na casa de uma delas e lá ficaram encostados a tentar dormitar, para depois partir juntos. Acho que não conseguiram, a dona da casa andava para a frente e para trás, à procura do que levar, sem acabar de arrumar...nem deixar descansar. À hora de partir, estava cansada mas tinha conseguido ter tudo pronto.
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Como se movimentos internos contraditórios existissem dentro das pessoas, partir de casa é um pouco a aventura, o afastamento, a perda da base de segurança conhecida. Mas o desconhecido atraí, e a curiosidade, vivida com segurança, pode ajudar a afastar do conhecido, separar.
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Margareth Mahler, psicanalista que estudou o desenvolvimento psicológico da criança e conceptualizou uma teoria sobre as psicoses infantis, descreve a certa altura do desenvolvimento infantil, quando a criança começa a ter autonomia para se afastar da mãe (aqui como figura de ligação e segurança para a criança), como ela se afasta um pouco, olha para trás, avança mais um pouco e depois volta completamente para junto da mãe, às vezes toca-lhe, para depois recomeçar a afastar-se. Este voltar para depois partir de novo, é como se a criança fosse à bomba-mãe encher o depósito de gasolina-afectiva.
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Curiosamente, quando as pessoas viajavam muito de carro, hoje é mais de avião, os receios motivados pelo afastamento eram sobretudo nos primeiros cem quilómetros, nem que ainda faltassem mil. Mas a partir dessa altura era mais a vontade do novo que prevalecia e até já carregavam no acelerador.
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Quando se vai de férias, deve-se encher bem o depósito afectivo antes de partir e ir gastando-o com moderação. Daí a importancia para mim de comer bacalhau com todos na véspera da partida para uma viagem a Terras de Vera Cruz...

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Poema - Sophia de Mello Breyner Andresen

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OS PÁSSAROS

Ouve que estranhos pássaros de noite
Tenho defronte da janela:
Pássaros de gritos sobreagudos e selvagens
O peito cor de aurora, o bico roxo,
Falam-se de noite, trazem dos abismos da noite lenta e quieta
Palavras estridentes e cruéis.
Cravam no luar as suas garras
E a respiração do terror desce
Das suas asas pesadas.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Aconteceu...a dificuldade de decidir aumenta quando pressionados de forma inadequada?

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Vivemos de vez em quando situações que deixam dentro de nós sentimentos vários.
Quer na vida pessoal quer na profissional, temos frequentemente de fazer a análise de situações e tomar as resoluções que nos parece mais adequadas. Quanto maior é a necessidade de decidir, mais necessitamos de ser habilidosos na avaliação.
..
Se trabalharmos em certas profissões, como os médicos intensivistas, que lidam com a vida e a morte no momento, é necessário decidir ao segundo. É preciso uma cabeça muito organizada e espírito frio.
Noutras, em que a vida e a morte não estão tão presentes, poderemos ter de atender a outros factores, alargando o campo da observação.
É o caso das situações com certo tipo de jovens, sem limites, com problemática pessoal, familiar, escolar, policial e jurídica de longa data, e que por já terem ultrapassado o comportamento admissível, são levados aos médicos e aos serviços de saúde como recurso último.
Nem sempre os serviços de saúde são a solução.
Apanhados nessa onda, somos postos à prova. Temos de decidir, não ao minuto mas na hora, ali.
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Porque há sempre outros lados, passamos por frios, ouvimos críticas que começam por ser a Portugal, depois aos serviços de saúde e acabam em nós.
Não é boa técnica exigir insultando, amedrontando com ameaças veladas. Podemos ficar contaminados com os sentimentos de injustiça que nos estão a fazer viver. Exige um maior trabalho psiquico de quem recebe a desqualificação continuar a analisar objectivamente para depois decidir.
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Há situações mesmo lixadas, não tem outro nome. E temos mesmo de as viver, seja qual fôr a hora do dia ou da noite, basta chamarem-nos e sermos nós quem tem de responder.