terça-feira, 19 de março de 2013

Aconteceu...Pai, só no meu pensamento existes enquanto tal

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Olá Pai
Chego onde chegar hoje só vejo falar de Pai, seja nas televisões, jornais ou redes sociais como o facebook. Isto não sabes o que é, quando eras vivo não havia e os computadores eram umas caixas gigantes que só os bancos tinham. Faziam muito barulho, estavam ao ar livre e vocês, tu e a Mãe, que tiveram esses monstros no pátio do prédio vizinho, tiveram de pôr janelas duplas, melhor vidros duplos, para conseguirem dormir. Eram do SottoMayor, olha já não existe, foi fundido com outros e nós temos sido f-didos por eles todos. Não, não vou entrar por aí, tinha de te explicar tanta coisa para tu entenderes o que nos está a acontecer... Pois, longe vai o tempo em que te vi, já doente e à Mãe, fazer a pé o cortejo do funeral dos vossos amigos Pedro Soares e Maria Luísa Costa Dias...mas também não te queria falar disto. Também não vou falar de quanto fora de tempo viveste, quer no aspecto artístico quer no avanço técnico da medicina.
Quero só dizer que me lembro de não deixares festejar este dia lá em casa, o chamado Dia do Pai. Dizias e eu achava horrível, que muitos filhos não sabiam quem era o pai. Pois não, reconheço agora, mas também sei que a bem da saúde mental todos têm direito a ter um pai e se não for o biológico será outro, um afectivo. Sem isso dentro da criança morre uma parte e arrastará esse sentimento de falha pela vida fora. E mais grave, com maior dificuldade saberá ser pai ou mãe "good enough", alterando um pouco mas parafraseando Winnicott. 
Um beijo para ti, em pensamento. Sei que só nele, no meu, existes enquanto tal.

terça-feira, 5 de março de 2013

Acontece...que aprendi há anos que havia o "chuto" da mulher a dias

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Foi no início do meu trabalho em Lisboa. Alguns anos depois da escola, encontrei-a no hospital onde prestava serviço, eu médica e ela doente. Exuberante, ria em voz alta, esbracejava em movimentos largos, por onde passava era impossível não notar. Causava-me incómodo,   tínhamos tínhamos feito o liceu juntas, eu segui no caminho mais ou menos esperado, ela...
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Lembro-me bem, ela a descer as escadas com mais uns internados, todos do mesmo "ramo", seguiam todos os dias de narinas e boca bem abertas, as empregadas da limpeza que usavam para a lavagem das escadarias de madeira ,detergentes, amoníaco e diluentes. Aprendi na altura que se dizia que ali, incapazes de encontrar outro"produto", procuravam com aquela inspiração, obter o "chuto da mulher a dias".
Eu tentava ser transparente, de tão aflita que ficava. Mas embora me cumprimentasse, brevemente, o fim que procurava era mais forte e eu ficava mesmo uma insignificancia ali.
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Voltei a encontrá-la uns anos mais tarde, discreta, a trabalhar muito abaixo da sua formação. Noutro encontro, a sua exuberância voltou a preocupar-me. Não nos víamos muito. Eramos amigas virtuais em duas redes mas raramente sabia dela.
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Morreu hoje, soube esta tarde. É um périplo perigoso, às vezes imparável, vão-se as drogas entra o alcool, vai-se o fígado, por fim os outros orgãos. Vão se os colegas, os amigos, a família. E depois...
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Sofrem os próprios (admito que já tinham sofrido antes disto tudo), mas fazem sofrer os outros. Deixam marcas de sofrimento na família, nos filhos, nos netos que são filhos dos filhos... É a transgeracionalidade,  forma perigosa de perpectuar o sofrimento.
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Já se foi, não fiquei muito admirada, mas as imagens das escadas voltaram à minha memória...