sábado, 31 de julho de 2010

Poema - Fernando Pinto do Amaral

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OLHAR
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Entre o dia que morre
e a noite que vem
uma lágrima escorre
no silêncio de alguém
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- silhueta que vi
e ainda me seduz
ao passar por aqui
como um raio de luz
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cada vez mais perdido
do seu resto de sol
agora adormecido
nesta sombra que engole
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cada último passo
a caminho do nada
como se nenhum espaço
fosse a minha morada

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Aconteceu...ligações psicológicas perigosas entre mães e filhos

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(...) O soldado Milty telefona do Japão. "Mamã", diz ele, "é o Milton, tenho óptimas notícias! Conheci uma rapariga japonesa maravilhosa e casámo-nos hoje. Assim que for desmobilizado levo-a aí a casa, mamã, para vocês se conhecerem." "Pois claro", diz a mãe, "tens de a trazer cá." "Oh, óptimo, mamã", diz o Milty, "óptimo - só que estou agora a pensar, o teu apartamento é tão pequenino, onde é que eu e a Ming Toy havemos de dormir?" "Ora!", diz a mãe, "na cama, claro! Onde é que havias de dormir com a tua noiva?" "Mas então onde é que tu dormes, se nós dormimos na cama?" Tens a certeza que há lugar para nós, mamã?" "Oh Milton querido, por amor de Deus", diz a mãe, "está tudo bem, não te preocupes, há lugar de sobra: assim que desligares o telefone, vou-me matar."(...)
in O Complexo de Portnoy de Philip Roth
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Cristiano Ronaldo "apareceu" com um filho...sem mãe. O facto de dizer que a mãe do bebé foi uma barriga de aluguer, tem de ser visto como uma exclusão (real e psicológica) da existência da mãe. Não será possível à criança fantasiar sobre ela, uma vez que não existe.
A mãe do futebolista veio dar uma ajudinha à compreensão simbólica da situação quando terá afirmado para uma revista cor de rosa "O meu neto é parecido com o pai e com a avó".

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Poema - Nuno Júdice

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ACORDAR
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Um dia, quando começa, parece igual aos
outros. A mesma luz que entra pela janela,
ruídos de obras e automóveis, vozes... Mas
o que nesse dia me falta é outra coisa: a tua voz, a surpresa de cada instante que me dás,
uma luz diferente que não vem de fora, da
mesma rua e do mesmo céu, mas de dentro
de ti. Assim, o que faz a mudança do mundo
e das coisas não é o mundo nem as coisas:
somos nós, e a relação que nos prende um ao
outro - isso que, não sendo nada para fora
de nós, é tudo o que temos nesta vida.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Aconteceu...Exposições de Júlio Pomar e Graça Morais


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As recuperações das cidades, de edifícios, castelos, a criação de museus e outros equipamentos começam a melhorar a qualidade de vida no interior.
Tinha lido no jornal que ia ser inaugurada uma exposição do Pomar - Uma antologia -no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, em Bragança. Estando já no centro do país, resolvi dar lá um salto.

O edifício, antigo e bonito, recuperado pelo Arquitecto Souto Moura, com resultado muito bom, tornou o espaço muito agradável. Aliás foi reconhecido e premiado internacionalmente.

A exposição, grande, acompanha os vários períodos ou fases do Pomar, e, apesar de já ter visto várias mostras, é sempre um grande prazer. Desenho, pintura e escultura.
Obras desde os anos 40 a 2007.

Gosto muito destas manchas significativas.



Noutras salas, "Retratos e Auto Retratos" da Graça Morais



Uma volta pela cidade, o castelo com as casas e ruas recuperadas, valeu bem este passeio.

domingo, 25 de julho de 2010

Poema - António Cabral

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AQUI, O HOMEM

Nem Baco nem meio Baco!:
Aqui é o homem,
desde as mãos ossudas e calosas,
desde o suor
ao sonho que transpõe as nebulosas.

Montes de pedra dura,
gólgotas
onde os geios são escadas!
Venham ver como sobe o desespero
e a esperança, de mãos dadas.

É o homem.
Isso é o homem.
– Nem sátiro nem fauno –
Uma vontade erguida em rubro gládio
que ganha a terra, palmo a palmo.

Vinhas que são o inferno,
o único
em que o fogo é a taça da alegria!
Venham ver um senhor
grandioso como o sol ao meio-dia.

Nem Baco nem meio Baco!:
Aqui é o homem
que nada há que não suporte
mas suporta e persiste.
Aqui é o homem até à morte.

sábado, 24 de julho de 2010

Aconteceu...cenas do prédio da minha infância

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A D. Maria era a lavadeira de Sintra, que de carroça e burro passava todas as semanas para buscar a roupa que entregava por passar na semana a seguir. Estamos nos anos 60, altura em que não tínhamos ainda máquina de lavar roupa. Ora a D. Maria era muito simples, tratava toda a gente da mesma forma. Fosse a senhora marquesa do 5º direito que para ela foi sempre a D. Amela, assim sem i, fosse a porteira a quem ela tratava de igual forma, a D. Emila, sem i também.

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Pois esta D. Emília, cá vai o nome certo, precisou algumas vezes de tirar dentes. O dentista seria raro e caro, mas ela não se atrapalhava. Atava ao dente um fio que prendia na porta de dentro do elevador, daqueles ainda com porta de lagarta em ferro. O senhor António, com quem era casada, subia ao 1º andar e puxava o elevador e lá conseguia, depois de algumas tentativas repetidas arrancar o dito.
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O marido, em expediente médico-cirúrgico não se ficava atrás. Tinha umas boas varizes nas pernas, e um dia pensou que se aquelas coisas ali estavam saídas, o melhor era cortar o mal pela raiz, como já tinha feito com uns calos e uns cravos. E assim o fez, na cozinha. Escolheu a melhor faca, afiou-a com todo o cuidado, sentou-se numa cadeira, esticou a perna e com toda a sua força tentou cortar aquela excrescência. Só que mal deu uma facada, o sangue jorrou com pressão saindo em jacto e sujando o tecto. Quanto a ele, caiu para o lado e foi levado de urgência em shock.
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Gente simples!

sexta-feira, 23 de julho de 2010

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Aconteceu...que há crianças que tiveram necessidade de crescer depressa!

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Entra, cumprimenta sem me conhecer, ar seguro. Tem uns 10 anos e senta-se à mesa onde a miúda holandesa está a tomar o pequeno almoço. Estou na mesa "dos crescidos", olha-me e diz: eu sei falar inglês, passei para o 5º ano e aprendi na escola. Queria meter conversa com ela, mas agora não me lembro, como se diz "qual é o teu nome"?

Digo-lhe, ela pergunta, a holandesa da mesma idade responde.

A conversa vai passar para mim. Conta-me que do 1º ao 4º ano teve na escola, nas actividades um professor de inglês. Mas está esquecida, como se diz "quantos anos tens?" Lá lhe digo. A conversa entre elas vai ser aos soluços, a portuguesa sempre a afirmar que sabe mas não se lembra.

Acaba por ir brincar com o amigo português que entretanto chega..

Mais tarde , na piscina, ela diz, "vamos a ver se posso vir logo outra vez" e o amigo português da mesma idade diz-lhe, foge, diz qualquer coisa ao teu pai e vem se ele não te deixar".

Venho a saber que o pai dela teve há anos um terrível desastre e está tetraplégico. Filha única é a auxiliar da mãe para muitas coisas, até tratar do pai..

Fez-se luz no meu espírito. Sabe falar inglês, embora só tenha aprendido umas frases na escola. Despachada. Teve necessidade certamente de ter ter crescido à pressão, perante a força das circunstâncias, a doença do pai. Fazer de crescida, ser autónoma.

Poderá ela, como o outro, mentir ao pai? Aquele pai frágil que ela sabe que com ele não se pode zangar porque ele não se pode defender?.

Há crianças que, por terem familiares de quem dependem, mas que de alguma maneira são fracos, deprimidos, psicóticos, deficientes, tiveram de dar saltos no crescimento, cuidar de si próprias, ficar com responsabilidades acrescidas, e ficaram hipermaturas (maduras na aparência). Por baixo, frequentemente ficam falhas, humores que riscam descompensar um dia, depressivamente, mas não sempre, felizmente.
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Há vidas que obrigam a isto, ser-se crescido quando se devia ser criança. São uns sobreviventes!

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Poema - valter hugo mãe

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duvido que volte a cair neve
enquanto eu estou a olhar.
tenho os olhos quentes e aqueço
tudo em redor. a espera põe-me
assim. se vier chuva sou só eu
a chorar

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Acontece...que com as novas experiências se cresce

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Custa-me sempre ouvir uma mãe ou um pai dizer que superprotegem os filhos. Normalmente isto é dito com sinal positivo, mas eu faço a leitura contrária.
Muitas vezes são crianças limitadas na exploração do mundo, de experiências.
Com rotinas pouco ou nada criativas.
Os pais devem de alguma maneira "tomar conta" do mundo que é explorado, saber onde, quando, com quem, e depois ajudar a criar o prazer da novidade, dando alguma liberdade controlada.
As crianças só enriquecem com isso.
Lembro-me de pais que não deixam as filhas ir a casa de colegas "porque podem ser abusadas sexualmente". Ora nós sabemos que a maior parte dos abusos é intra familiar, ou de pessoas muito próximas, professores, amigos dos pais. São medos que são limitativos do desenvolvimento social.
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Estou na minha primeira etapa das minhas férias.
Numa quinta no centro do país, estou a fazer, pela "enésima" vez, um curso de joalharia. Já aqui disse que tem trabalha intelectualmente e sobretudo com as dificuldades psicológicas ou mesmo com a doença mental, tem de ter escapes diversificados. Este é um dos meus.

Mas esta minha conversa de hoje sobre novas experiências, tem a ver com o facto de neste curso, onde somos 8 (numero máximo aceite), ser composto por um austríaco, uma finlandesa, uma francesa, uma holandesa e os restantes são portugueses. Ao almoço falou-se português e inglês, sobretudo, porque curiosamente os estrangeiros querem aprender português. Falamos das nossas profissões, da nossas terras. Tirando os professores, nenhum de nós transformou até hoje este hobby em profissão.
Enquanto grupo, estamos a conhecermo-nos.
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Na mesa redonda ao lado, um grupo também diversificado de crianças com as nacionalidades dos adultos mais uns suiços cujos pais vieram deixar-los uma semana para que tenham outras experiências. Idades entre os 5 e os 9 anos. Com eles estão animadores sociais e os donos da quinta que são de uma qualidade afectiva e artística rara.
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Crianças e adultos que se conhecem, novos hábitos, novas comidas, novos relacionamentos, para alguns a primeira experiência de dormir fora de casa.
Estamos já disse, numa quinta, onde há uma imensidade de coisas com as quais as crianças da cidade não convivem habitualmente, e que vão conhecer/viver/compreender. Brincar com poucos brinquedos, sem electrónica, mas com muita criatividade.
Nos intervalos, há sempre a hipótese de um mergulho na piscina, que, com o calor que está, sabe muito bem.
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Estes miúdos e os graúdos nos quais me enquadro, vamos todos sair mais ricos.
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Coitadas das crianças que só podem experimentar o que já é conhecido! Que grande desprotecção!

domingo, 18 de julho de 2010

Poema - Nuno Rocha Morais

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Invadiu-me uma sensação de calma,
de tristeza e de fim.
Virginia Wolf
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Ao teu lado, mudo.
Suponho que pousei a mão
No teu ombro, não sei,
Ausentes ambos.
Tu do ombro, eu da mão.
Lá fora, não muito longe
Do vidro, a manhã passa
E é calma, tristeza, fim.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Aconteceu...que os ténicos eram bons mas o jardim era um matagal

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Há uns anos trabalhei num serviço que na altura era modelo. Edifício novo, equipa entusiasmada e cheia de iniciativas, íamos para o trabalho como quem ia para o seu clube.
Penso mesmo que fazer do serviço "o seu clube" é uma das artes de transformar o trabalho em prazer.
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Mas tínhamos alguns "senãos", claro.
Um deles era o jardim que envolvia o edifício, mais conhecido pelo "matagal", onde cresciam ervas ao desbarato, que no verão se tornavam um óptimo palco para possíveis incêndios e morada de muitos animais rastejantes e roedores.
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Um dia na consulta, uma criança grita olhando para a parede que ficava à minha frente e atrás da avó que a acompanhava. Apontou e gritou "Olha um lagarto". A avó, que se tinha ido queixar do comportamento da neta, aproveitou o grito que nos interrompeu para dizer " Vê, sra. Dra., mentiras são todos os dias e não respeita ninguém." Mas o bicho estava lá, gordo e comprido, mesmo à minha vista.
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Noutra altura, na caixa das reclamações, apareceu um envelope escrito e com brinde. Com letra muito pouco elaborada, alguém tinha escrito que os médicos e os técnicos todos eram bons e eram bem atendidos, mas a criança tinha muito medo de lá ir por causa dos bichos, e a provar acompanhava a missiva um rato morto e ressequido.
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Com a presença de utentes nas reuniões dos conselhos de administração dos hospitais, proposta recente, será que estes aspectos quase ignorados passam a ser valorizados?

Poema - Nuno Júdice

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A POESIA
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É uma luz que desce a escada do poema e
se senta à porta, esperando que o dia entre
para dentro da estrofe.
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É uma voz que se encosta ao corrimão
da palavra, e sobe sílaba a sílaba até chegar
ao patamar do verso.
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É o eco que nasce de um canto perdido
nos quintais do poema, e atrai os pássaros
para dentro desta imagem.
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É a mão que percorre as linhas da frase,
como se fossem as linhas da vida, e decide
em cada cesura um ponto final.
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Como se a poesia nascesse do silêncio, ou
um grito a empurrasse para a vibração
de um último eco.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Aconteceu...o tempo da nossa vida é subjectivo

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Há bastantes anos, precisamente em 1981, iniciei a minha especialidade no Hospital Miguel Bombarda.
Para quem não sabe, tratava-se de um hospital psiquiátrico, onde apesar de ter no seu quadro alguns médicos activos e influenciados por correntes dinâmicas da nova psiquiatria, ainda era muito fechado ao exterior.
Tinha internados doentes agudos mas também outros que ali viviam em permanência, há largos anos, e cujas famílias já quase os tinham esquecido. Estes doentes, estavam medicados e sem outra vida que passear pelo pequeno espaço livre do hospital, um clube com bar e umas actividades de ocupação terapêutica.
Na enfermaria, para além do contacto com os médicos e enfermeiros, tinham umas reuniões onde se pretendia activar as partes mais sãs dos doentes, permitir-lhes dialogar, expôr desejos de mudança etc.
Participei na primeira reunião de serviço com médicos, enfermeiros e doentes, que tendo existido semanalmente até 1974, tinha sido interrompida e só recomeçada exactamente na altura que para lá entrei.
Os médicos e enfermeiros eram, na quase totalidade os mesmos que tinham participado na reunião 7 anos antes. Parte dos doentes também lá tinham estado, visto serem doentes crónicos com anos de internamento e para os quais o hospital era a sua casa.
Depois de ter sido dado início à reunião, um doente dos mais antigos pede a palavra, e dirigindo-se ao médico chefe e disse "Sr. Dr., na reunião da semana passada...". Blá, blá, blá e eu não faço a mais pequena ideia do que é que ele falou. Fiquei presa ao facto de alguém poder resumir 7 anos a 1 semana! Presa, angustiada e triste. É terrível pensar que para ele provavelmente nada se tinha passado durante aqueles anos, que tivesse preenchido o tempo, dando-lhe memória, vivências, espessura.

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Mais tarde estudei algumas coisas sobre o tempo subjectivo, fenómeno que me interessou. E li um romance excepcional, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, que aconselho a quem quiser compreender como se pode com a nossa actividade mental hibernar (perder) ou ganhar (viver) a vida.
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Lembrei-me deste episódio hoje, dia em que recomecei a dar um Seminário que esteve interrompido desde a fractura do meu pezinho, já lá vão 9 meses. Não, não nasceu nenhum bebé, mas foi apresentado um texto com 9 meses de atraso.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Poema - João Melo

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DUAS LIÇÕES
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I
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Todos os materiais servem ao poeta:
o som de um tambor,
a angústia de uma mulher nua,
a lembrança de uma utopia.
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A vida deposita, diariamente,
no altar profano da poesia
a sua dádiva generosa:
estrelas e detritos.
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E tudo a poesia sacrifica.
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II
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Para amar um poema,
é preciso ter coração e
sangue nas veias.
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E que o poema seja uma carícia
ou um soco na boca do estômago.

sábado, 10 de julho de 2010

Aconteceu...baratas gigantes invadem Lisboa

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"Baratas gigantes invadem Lisboa".
Não é nenhum título de filme, parece que acontece quando há muito calor, como tem estado. Chamada a barata americana, vive nos esgotos de onde sai à procura do fresco. E vem no jornal de hoje, citando zonas como Telheiras, a Expo e Campo de Ourique.
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A minha avó Elvira morava num 3º andar de um prédio de construção de gaiola de madeira. Eram andares grandes, com muitas assoalhadas. Como era formato habitual, à porta e virando à direita seguia-se um enorme corredor - grandes viagens de triciclo e de trotinete fiz, naquilo que eu imaginava ser uma grande estrada -, de onde saiam vários quartos, sala de costura, saleta, sala de jantar, cozinha e casa de banho. Se da porta da rua se virasse à esquerda, uma sucessão de salas, comunicavam entre si . A última era o escritório, um dos meus sítios preferidos para, ainda eu não sabia escrever, já "atender" doentes e passar receitas.
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Mas voltemos às baratas. Os locais mais frescos eram a cozinha e a casa de banho. Lembro-me de uma vez por outra encontrar uma na casa de banho, grande, gorda e preta. Algumas vezes o nosso cruzamento terminava com o esmagar propositado do bicho e o barulho da casca de quitina a partir-se ainda hoje me é familiar. Se me enojava e amedrontava, também me causava um arrepio de excitação, pelo que repetiria o acto heróico quando, noutra altura, nova barata se cruzava comigo.
Era uma convivência normal, existiam elas e nós também.
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Mais tarde vim a encontrá-las nos navios, subindo pelas paredes. Essas eram castanhas, e muito mais pequenas, mas às dezenas ou mesmo centenas. Enojavam-me.
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Também Rafael, personagem de Ruben da Fonseca em A Grande Arte tinha nojo delas. Assassino cruel, que no entanto cultiva rosas, é vencido quando conseguem meter-lhe uma barata na boca, tal o nojo que o bicho lhe causou. Nessa altura foi possível ao anão espetar-lhe uma tesoura na barriga e matá-lo.
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As que agora invadem Lisboa, justificando nalguns casos o recurso a empresas desbaratizadoras, serão talvez descendentes afastados das da Rua Viriato?

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Poema - Maria do Rosário Pedreira

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Lembro-me do muro entre a estrada e
a praia. Sobre ele nos sentámos, como se para sempre
pudéssemos guardar a primeira fatia de sol, janeiro,
uma palavra aprendida de noite, ou uma ilha
que crescesse do mar e navegasse à deriva. Mais tarde
viriam as vespas e as gaivotas ao rumor dos meus dedos
nos teus cabelos - como anjos há muito aguardados.
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De todos os momentos guardo este; e ainda um outro
em que os meus passos se ouviam já no asfalto,
mas os olhos permaneciam nesse lugar onde apenas se repetem
as ondas, as algas, os avisos do vento.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Aconteceu...que com o mal do vizinho podemos nós bem

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De vez em quando somos confrontados com situações que nos dão um autêntico abanão.
Em termos de doença, por exemplo, acontece por exemplo vamos a uma consulta mas não imaginamos que a situação possa ser grave. Quando o médico dá o veridicto nem o entendemos, ou só parcialmente, ou até erradamente. E podemos mesmo ficar com alguma desorganização psicológica momentânea.
Não, não é má vontade nossa, mas só ouvimos e compreendemos o que podemos aceitar naquela altura. Depois, a pouco e pouco, vamos elaborando o choque da novidade e poderemos vir a compreendê-la mais tarde.
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É uma posição difícil para os pais que ouvem dizer que o que os filhos têm é isto, ou aquilo. Às vezes apetece não ouvir o que nos estão a dizer. Tirem-me deste filme, como se dizia há uns anos.
Quando me dizem que aqueles pais não querem compreender o que é evidente para um técnico, costumo dizer que não podem, tem de se dar tempo, uns sais (conversar), uma água das pedras (ir compreendendo as pessoas) e mais tarde poderão compreender/ver.
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Nem sempre é assim, alguns têm uma dificuldade acrescida. Como aqueles para os quais os filhos são o seu espelho para os outros. Poderão sentir como grandes feridas para eles próprios a doença ou as dificuldades dos filhos. E dificilmente poderão aceitar.
Outros, perante os problemas dos filhos, conseguem pôr-se na posição da criança, identificando-se por forma a compreender e sentir o que elas sentem, seja a dôr física, a irritação, a dificuldade de se integrar, brincar ou evoluir como os outros, tornando-se possível a sua relação positiva.
Estes pais são muito mais capazes de ajudar os filhos a ultrapassar as dificuldades.

Mas lá que há notícias que dão "digestões" difíceis, isso há!

terça-feira, 6 de julho de 2010

Poema - Matilde Rosa Araújo

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Mãe,
que verdade linda
o nascer encerra.
Eu nasci de ti,
como a flor da terra.

Poema - Sophia de Mello Breyner Andresen

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As amoras
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O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Aconteceu...Exposição de escultura "Negreiros e Guaranis" em Loulé

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Duas peças: as de baixo arte duas peças de arte primitiva africana da colecção de José de Guimarães; as de cima esculturas de José de Guimarães: homem e mulher.
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Exposição em Loulé, no Palácio da Fonte da Pipa.
É interessante ver a influência da arte africana no trabalho de José de Guimarães. Tem peças muito bonitas.
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O Palácio da Pipa, normalmente fechado, é privado, à espera que a Câmara autorize uma urbanização o que felizmente parece, já por duas vezes foi chumbado o projecto. O palácio merece uma visita assim como os jardins.
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Fotos - Magda


domingo, 4 de julho de 2010

Aconteceu...Quem dá e tira (não paga) ao inferno vai parar?

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Há tempos convidaram-me para moderar uma mesa num encontro sobre problemática respeitante às crianças e adolescentes. Para além de moderar também me pediram para apresentar um trabalho. Aceitei de bom grado. Era no Algarve. Avisaram-me que a autarquia me pagaria a dormida e a deslocação. Quanto a honorários informei não pretender pagamento pelo trabalho.
Foi um dia de trabalho interessante e produtivo.
Quando chegou a altura de me pagarem a viagem, confrontei-me com o facto de me pedirem um recibo verde no valor da gasolina e as portagens, que o carro da deslocação era o meu. Não tenho vida liberal e como tal não tenho recibos verdes. Tenho até um contrato de exclusividade com o estado. Expliquei e solicitei outra solução. Nem me parecia que fosse esta a maneira adequada. Depois de uma troca de 2 mails e uma vez que vi que não ia haver solução, redigi um mail um pouco irónico oferecendo ao não-pagador o dinheiro da deslocação.
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Li num jornal que ao fotógrafo Paulo Nozolino tinha sido atribuído o Prémio 2009 para as Artes Visuais pelo Estado. Já depois da cerimónia de entrega, foi informado que lhe iriam transferir o valor depois de deduzido o IRS, assim como mais uma série de outras condições como "que preenchesse uma nota de honorários e exigido que apresentasse certidões da situação contributiva, para a Segurança Social, e tributária, junto das Finanças" sem as quais não haveria transferência.
Chamou-lhe má fé, recusou o prémio e exigiu mesmo "não constar do historial dos premiados".
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Há coisas que considero estranhas e irritantes.
Aceito que estamos em contenção, que as verbas têm de ser muito bem geridas, o que nem sempre é evidente aos olhos do leigo que vê. Mas há que ponderar o que se oferece porque quem dá e tira (não dá) ao inferno vai parar.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Poema - Alexandre O ´Neill

CHAVAL

Entre o Bem e o Mal
cresce a borbulha na cara do chaval.

O chaval ainda não sabe
que a barba,bem ou mal
feita, é uma banalidade matinal.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Aconteceu...que hoje esteve um dia muito bom para estar de folga

Um psiquiatra americano fez uma investigação interessante, na segunda metade do século XX. Formulou como hipótese a provar que certas doenças mentais, nomeadamente a psicose, eram potêncialmente "contagiosas".
Numa casa residência de doentes mentais portadores de psicose, vários técnicos foram viver para lá, isolados do exterior durante um certo tempo.
Com regularidade iam fazendo relatórios-relatos da vida da casa. Os primeiros eram cheios de observações de comportamentos bizarros e descrições compatíveis com o esperado. Mas, e isso é o curioso, conforme o tempo ia passando, as observações relatadas eram cada vez com menos observações de coisas estranhas e quase tudo era vivido como uma terna "normalidade".
De certa maneira a hipótese foi provada. No fundo já se "sabia", que a psicose não só é invasora do próprio, como invade quem com ela convive sem outros modelos. Não que se fique com a doença, mas com uma adaptação a outras formas de funcionamento em deterimento do mais habitual.
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Talvez por isso dizia-se e se calhar ainda há quem pense que os psiquiatras são todos um bocado passados. O ditado aligeira e diz que de médico e de louco todos temos um pouco.
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Não trabalhando só com psicóticos, longe disse felizmente para todos, nos serviços pedopsiquiatria trabalhamos todo o dia com pessoas que nos procuram com os problemas dos seus filhos, de crianças sem pais , as suas dificuldades, angústias, seus comportamentos desajustados.
Ouvimos, falamos, relacionamos para procurar entender, ajudar o outro a perceber as suas dificuldades e a intervir conforme as necessidades e as possibilidades.
Certos dias trazemos na cabeça, ou no coração, as frases, o sofrimento que é vivido junto de nós. Acrescido de nem sempre temos os recursos necessários e necessitamos de, caso a caso, "inventar" soluções.
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Hoje tive um dia de descanso, que me soube muito bem. Foi o recarregar a bateria para amanhã continuar.