sexta-feira, 30 de abril de 2010

Poema - Ana Salomé

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DIÁRIO
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A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Aconteceu...ler


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Já escrevi que consigo cumprir a missão que me foi confiada, ai desculpem, isto foi noutro sítio... dizia eu que consigo aguentar andar de bicicleta ou fazer passadeira no ginásio porque levo um livro e estou sempre a ler..

Percebi ontem que na hidroginástica fiquei conhecida pelas muletas que ainda usava no início, no ginásio por este afã de leitura.

Já li vários livros, algumas passagens de um ou outro foram mote para escrituração aqui..

Acho que não disse como escolho os livros para levar para lá.

Preciso que sejam razoavelmente estreitos para se segurarem lá no painel do aparelho e que tenham letras bem gordas para eu as conseguir ler.

Assim, e atendendo às características, vou à estante e escolho, e tenho repetido vários livros que já tinha lido, alguns deles há muitos anos..

Acabei ontem, "Vinte E Quatro Horas Da Vida Duma Mulher" de Stefan Zweig, numa edição da Livraria Civilização e que está assinado na 1ª página, com nome inteiro da minha Mãe e ainda Feira do Livro 1942.

Curioso que a Feira do Livro de Lisboa abre amanhã e eu não fazia a mínima ideia que já existia há 68 anos! Mas não sei se houve de forma continuada ou com interregnos..

Quando o li a 1ª vez, pensei que o autor fosse uma mulher. Talvez por simpatia com o título mas também pela forma maravilhosa como ele descreve os sentimentos da protagonista.

Na verdade, também a forma como descreve o protagonista viciado no jogo, adicto como se diz hoje, é exemplar. E que actual! A descrição das mãos, da mímica, da tensão, a crença mágica na sorte, a capacidade de prometer mudar mas a incapacidade de o fazer, como se parte de si próprio deixasse de se lembrar e reconhecer..

Mas que sorte poder reler algumas obras-primas da literatura. Porque o que está na moda é ler a novidade, encomendar antes de ser posto à venda, mas porquê, para quê se tanto aprendemos com a releitura de obras antigas. E quantas não teremos ainda por ler? .

Cada vez que relemos, nós próprios estamos noutra fase, temos outros olhos, outras possibilidades de entendimento, e por isso a releitura é muitas vezes uma nova leitura.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Poema - A. M. Pires Cabral

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A ANDORINHA OU TUDO É RELATIVO
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Da andorinha dificilmente se dirá
que é um animal feroz. Pelo contrário,
convêm-lhe adjectivos como grácil.
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Mas a andorinha abre
para o mosquito uma boca aterradora.

domingo, 25 de abril de 2010

Aconteceu...numa reunião da Comissão de Moradores

Falta fazer uma recolha de situações cómicas e ridículas que aconteceram no post 25 de Abril, fruto de muito entusiasmo e uma liberdade ainda mal interiorizada.
Aqui vai uma história que vivi em 1974-75.
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A Comissão de Moradores de uma freguesia de Lisboa foi constituída meses mais tarde do dia que hoje festejamos. Bastantes membros, licenciados, militares, alguns trabalhadores e poucos operários. Eu era estudante universitária e havia mais alguns estudantes. Estavámos todos muito entusiasmados com o 25 de Abril e com a nossa função de pensar e o que fazer para melhorar a freguesia onde morávamos.

Assim, certa noite de reunião, que como de costume acabava de madrugada, chegámos à conclusão que o trânsito não estava bem ordenado, que havia ruas por onde os carros circulavam que não deveriam ter aquele sentido, outras nem deveriam permitir a passagem de veículos.

E se o pensámos, foi para pôr em marcha o projecto. Qual quê inserir essa ideia no projecto global da freguesia, articular com a Comissão Administrativa da Junta da Freguesia ou outra coisa qualquer! Pensou-se, está pensado e é para fazer já!

Saímos da reunião e fomos então "ordenar" o trânsito, arrancando os sinais de trânsito existentes do seu lugar e instalando-os onde as nossas cabeças bem pensantes tinham estabelecido.
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Agora imaginem o que foi de manhã, com as pessoas a sair de suas casas e a encontrarem os seus habituais caminhos todos trocados!

sábado, 24 de abril de 2010

Poema - Luís Filipe Parrado

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DEPOIS DO AMOR
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De mais nada posso falar:
só deste cheiro a fruta espessa, crua,
que de ti me fica nos dedos,
na polpa, entre a pele e as unhas,
mesmo depois do sabonete e da água corrente.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

aconteceu ... a propósito de uma notícia num jornal - 3

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Um homem abusou sexualmente durante 2 anos de uma criança com 8 de idade.
O abuso sexual foi dado como provado, com base nas declarações da criança, pareceres de médicos e psicólogos. Todos afirmaram ter havido abuso. O homem também e deu-se como arrependido.
Trata-se de uma situação grave, tanto mais quanto foi repetido e prolongado no tempo. As consequências para a criança sabemos que certamente serão muitas e será difícil serem completamente ultrapassáveis.
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Nem sempre esta coincidência de confirmação é possível. Muitas vezes as provas médicas e psicológicas não são conclusivas. Ficamo-nos numa de compatibilidade mas não de afirmação. A maior parte das vezes o abusador não confirma. Aqui houve tudo.
Apanhou pena suspensa e ficou obrigado a pagar uma indemnização de cento e tal mil euros à família da criança.
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Tudo se paga em dinheiro? Até um abuso sexual de uma criança?
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Eu é que fiquei com a respiração suspensa...
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Poema - Maria Eugénia Cunhal

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Olha-me bem nos olhos,
E diz-me se acreditas
Que eu possa alguma vez
Já não gostar de folhas secas,
Das velas remendadas das fragatas,
Do Sol, do Céu, de búzios, das estrelas,
Do mar batendo a areia,
Do voo das gaivotas,
Duns olhos que se dão numa promessa,
Das lágrimas, do riso, da alegria
Da Nona Sinfonia,
Do calor que uma mão consegue dar
A outra mão, sem mesmo lhe tocar,
Dos girassóis que Van Gohg pintou...
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Olha-me bem nos olhos,
E diz-me que acreditas
Que até a morte vir,
Eu hei-de amar as coisas que tu amas
E nelas sempre te encontrar a ti.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Aconteceu...vídeo

Recebi este vídeo por mail. Gosto do ar sério que é usado. E é tudo verdade, ainda por cima!
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segunda-feira, 19 de abril de 2010

aconteceu...histórias com médicos -3

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Em situações de grande carência emocional certas pessoas são capazes apresentar comportamentos que têm vários significados, apelativo, auto e heteroagressivo, preverso, etc.
Acontece por exemplo com a ingestão de objectos estranhos, que não só não são comestíveis como não são digeríveis e que terão de sair do corpo, intactos como entraram.
O F. de 10 anos tinha perdido a mãe cedo na vida, ficando com um pai alcoólico, abandonante, desorganizador, pelo que o rapaz andava ao Deus dará. Faltava à escola, não tinha poiso, esmolava na rua, era aliciado por gangs, pelo que, avaliada a situação, confirmada a desorganização, teve de ser protegido e foi internado.
A sua integração não foi fácil e iniciou um período muito complicado em que, a par de outras alterações de comportamento, muitas das coisas que apanhava à mão iam para a boca e daí para o estômago. Por mais cuidado que se tivesse, havia sempre um objecto que era deglutido. Estas situações eram inquietantes, uma vez que alguns dos objectos podiam ficar retidos no tubo digestivo, e necessitarem de ser retirados por meios cirurgicos, para além do risco existente de uma perfuração.
Raro era o dia em que não tinha de ir ao hospital fazer uma radiografia para estudar onde estava o "alimento" e acompanhar a sua saída. Começou a ser conhecido dos radiologistas.
Um dia lá foi ele novamente à urgência para ver do trajecto das pilhas do comando da televisão que tinham ido goela abaixo. Raio X feito, estudada a situação e o relatório foi conciso "Pronto a recarregar".
Mesmo com as coisas complicadas da vida, por vezes há saídas com humor.

domingo, 18 de abril de 2010

Poema - Maria do Rosário Pedreira

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O sono retirou-se do meu corpo e as cigarras
atormentam as minhas noites. Depois de teres
partido, os lençóis da cama são como limos frios
que se agarram à pele. Porém, se me levanto,
não faço mais do que arrastar a solidão pela casa;
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talvez procure ainda um gesto teu nos braços
do silêncio, como um pombo cego a debicar
as sombras na única praça deserta da cidade -
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o amor nunca aprendeu a ler nas linhas da mão.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Aconteceu...no Serviço Médico à Periferia - 5

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Beira Alta, Terras do Demo, 1980
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A enfermeira parteira vem avisar-me que numa aldeia lá para a serra está uma mulher para dar à luz. E pede-me que vá com ela, há dificuldades em transferir a parturiente para o hospital mais perto que fica a 60 km e a estrada é cheia de curvas. Teremos de ser nós a ir lá. É que parece que a criança vai nascer antes do tempo completo, trata-se de uma urgência.

Metemo-nos a caminho. São uns quilómetros aos saltos pela estrada de pedra que faremos no táxi, carro e chauffeur habituado a estas andanças, a enfermeira também, eu era a estreante e estava inquieta com mais esta aventura.
Estrada com gelo, trajecto perigoso, frio de rachar, mas lá chegamos. Facilmente se identifica a casa, vários homens de chapéu na cabeça estão à porta, como que a esperar-nos. Aberta esta, nuvens de vapor deixam antever panelas com água a ferver, linhos preparados para quando necessário, a cama da grávida e várias mulheres à espera do momento.
A mulher gritava com dores. E de repente, no meio da gritaria há uma breve pausa seguida de um grito acusatório. Com a mão a apontar para mim grita: Foi esta que me engravidou!
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Um grande silêncio se fez... O tempo parece que parou. Todos os olhares ficaram poisados em mim...
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É que uns meses atrás, na minha consulta, os resultados das provas hepáticas desta senhora não enganavam. Deveria, entre outras coisas, interromper a pílula durante uns tempos. Perante a minha indicação, a senhora inquietou-se, não estava com vontade de engravidar. Expliquei como fazer, de outros métodos contraceptivos poderia usar, que precauções tomar e a doente pareceu compreender, aceitou e ficou de voltar para repetir as análises uns tempos depois.
Nunca mais voltou e eu nunca mais pensei no assunto.
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Pois era ela que estava agora ali, não para ter já o parto mas com uma cólica renal.
E outros métodos? Ora Dra., o meu marido não quis, era tudo muito complicado!

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Poema - Mário-Henrique Leiria

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Uma garrafa de gin estava
a preocupar
o pescador
a garoupa e o rodovalho
não tinham aparecido
pró jantar
que fazer?
telefonou ao ministro
da Pesca e do Trabalho
mas o ministro
estava a trabalhar
na cama
com a mulher
foi então
que a garrafa de gin
sugeriu discretamente
porque não
telefonar ao presidente?
telefonaram
o presidente da nação
estava em acção
na cama
com a mulher
nessa altura
até que enfim
encontraram a solução
o pescador
foi para a cama
com a garrafa de gin

quarta-feira, 14 de abril de 2010

terça-feira, 13 de abril de 2010

Aconteceu...que há passeios e paralisias mentais

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Durante muitos anos passávamos um mês na praia da Manta Rota.
De tão pequenina, naquela altura aquela terra quase nem era uma aldeia, antes um lugar, com poucas casas, baixinhas, uma pequena escola primária e uma mercearia cujo lema era "Casa Humberto, tem tudo aqui tão perto".
Quase deserta fora da época de verão, à sua frente um enorme areal quer para a direita, direcção Tavira, quer para a esquerda, na direcção de Vila Real de Santo António.
Dava enormes passeios, em família, com amigos às vezes, outras vezes sozinha. Levantava-me mais cedo que todos e lá ia eu, eu e as aves que ainda não tinham levantado voo depois da noite se calhar lá passada.
Eram uns quilómetros de areia, plana e fácil de andar. Andar e pensar. Naqueles meus passeios solitários, todos os pensamentos e emoções pareciam ter a facilidade de me aparecerem no espírito. Eu acho que "escrevi" dúzias de contos, "desenhei" imensos projectos de quadros, "construí" muitas esculturas com detritos que o mar ia deitando para terra e que eu ia levando para casa.
Sentia aquelas caminhadas solitárias como um espaço de liberdade, descansavam-me e alegravam-me. Eram mesmo férias!
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Tenho-me lembrado muito destes "passeios mentais" no ginásio onde, inicialmente com espírito de recuperação do pezinho, vou diariamente.
Chego e começo por um "passeio" de bicicleta. À minha frente um enorme vidro dá para a piscina, e acima dele muitas televisões com imagem e sem o som correspondente. No ar há quase sempre barulho, ou música ou "corridas" concertadas de bicicletas, as chamadas RTM (rotações por minuto), e que são acompanhada por ordens, urros ou frases ditas em conjunto.
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Por mais que eu pedale, o meu pensamento recusa-se a passear.
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Optei por levar um livro que leio sofregamente enquanto as pernas, de forma automática pedalam. É assim que passa o tempo e aguento o exercício que é suposto fazer.
Depois há a hidroginástica. Vários professores conforme o dia.
Música ritmada mas horrorosa. Nunca fui a uma rave mas imagino lá essa música, electrónica, techno, house ou lá o que é e com o som bem alto.
Suponho que a finalidade é pôr-nos com uma aceleração de pulsações e um aumento de adrenalina para darmos os pulos que nos são pedidos.
Há professores que dão muitas ordens, devem achar assim os exercícios mais dinâmicos. Então eu fico mentalmente presa, a contar, perna esquerda perna esquerda, braço direito, perna esquerda perna esquerda, braço direito, para depois mudar para pontapé perna direita, atrás perna esquerda, ao lado etc. É um cansaço!
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Outros são menos "criativos", os exercícios têm uma repetição simples, consigo fazê-los deixando lá só o meu corpo, e aí tenho dado grandes passeios.
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Nesses dias venho para casa muito mais bem disposta e leve. Quase consigo imaginar que estou a chegar da Manta Rota.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Poema - Ana Luísa Amaral

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BIOGRAFIA (CURTÍSSIMA)

Ah, quando eu escrevia
de beijos que não tinha
e cebolas em quase perfeição!


Os beijos que eu não tinha:
subentendidos, debaixo
das cebolas


(mas hoje penso
que se não fossem
os beijos que eu não tinha,
não havia poema)

Depois, quando os já tinha,
de vez em quando
cumpria uma cebola:

pérola rara, diamante
em sangue e riso,
desentendido de razão


Agora, sem contar:
beijo ou cebolas?

O que eu não tenho
(ou tudo): diário
surdo e cego:

vestidos por tirar,
camadas por cumprir:


e mais:
imperfeição

sábado, 10 de abril de 2010

Aconteceu...a propósito de uma notícia - 6

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Li no jornal de hoje que um rapaz de 8 anos viajou sozinho dos EUA para a Rússia. Tinha sido recentemente adoptado por uma família americana que não suportou o seu comportamento e o "devolveu". Tanto quanto a notícia nos informa, estaria um guia turístico à sua espera para o entregar a quem se interessar pela situação. Ainda diz que foi retirado à mãe tardiamente por alcoolismo materno, certamente com negligência e quem sabe maus tratos.
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Em Portugal "devolver" crianças também acontece. Durante 2009 os números indicam que a 16 crianças aconteceu esta situação. Algumas por razões inaceitáveis, porque passíveis de avaliação prévia, como não se dar bem com primos ou até por ter medo do cão da família, na óptica da família adoptante, claro.
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Mas a adopção é um assunto muito complicado, que envolve várias vertentes.
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Há quem pense (alguns técnicos) que o melhor que pode acontecer às crianças que estão nas instituições é serem adoptadas. Á primeira vista pode parecer, uma vez que ainda se pensa uma família ainda é o ideal para se crescer, mesmo estando ela a sofrer tantas modificações.
De um ponto de vista economicista é certamente o mais barato para o Estado, e isso tem um grande peso em muitas decisões.
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Há estudos que defendem que nem todas as crianças podem e devem ser adoptadas. Se há aquelas que têm características para se adaptarem a uma família sem criar grandes problemas, haverá outras que por apresentarem características psicológicas complicadas, nomeadamente pelos comportamentos e inadaptação permanente, são extremamente difíceis de serem integradas em meios pequenos, necessitando de uma família com características terapêuticas, o que não é fácil encontrar. Deveria haver instituições especiais para estas crianças. Haverá ainda outro grupo, que apresenta problemas ainda mais graves, cuja manutenção em grupo alargado como uma instituição será mesmo a melhor forma de o ajudar a crescer.
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E há as famílias para os acolher, que são diversas e sobretudo têm diferentes motivações para querer ficar com uma criança. Muitas vezes razões quase só pessoais e não de generosidade como se pretende por vezes pensar. E estão no seu direito.
Ouvi um dia destes alguém criticar os possíveis adoptantes por quererem crianças pequenas e brancas. Mas será isso muito estranho na sociedade a que pertencemos? Não quererão os pais adoptarem crianças "como se" fossem mesmo seus filhos?
Lembro-me de ter conhecido um casal de origem diferente, indiana e africano, que adoptaram duas crianças, uma indiana e outra africana, e tiravam imenso prazer por as pessoas pensarem que uma criança tinha saído ao pai e a outra à mãe. Cumpriam verdadeiramente a função pela qual tinham sido adoptadas, uma vez que o casal era estéril.
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Crianças e famílias têm de ser muito bem estudadas por forma a evitar situações de "devolução".
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Cada criança que é adoptada já viveu pelo menos uma vez uma situação de perda.
Uma nova experiência falhada vem reacender o sofrimento do abandono, com enormes custos psicológicos para ela.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Poema - Maria do Rosário Pedreira

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Os amantes aparecem no verão, quando os amigos partiram
para o sul à sua procura, deixando um lugar vago
à mesa, um bilhete entalado na porta, as plantas,
o canário, um beijo e um livro emprestado: a memória
das suas biografias incompletas. Os amigos
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desaparecem em agosto. Consomem-nos as labaredas do sol
e os amantes que chegam ao fim da tarde
jantam e de manhã ajudam a regar as raízes das avencas
que os amigos confiaram até setembro, quando regressam.
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trazem saudades e um romance novo debaixo da língua.
Levam um beijo, os vasos, as gaiolas e os amantes
deixam um lugar vago na memória, cabelos na almofada,
uma carta, desculpas, e um livro de cabeceira que os
amigos lêem, pacientes, ocupando o seu lugar à mesa.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Aconteceu...excesso de zelo?

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Chamava-se Benfica, e era vagabundo. Andava de terra em terra, com uma sacola de pano na ponta de um pau que trazia ao ombro. Lá dentro todos os seus pertençes. Esmolava sempre bêbado. Pedia comida e sítio para dormir. No cabelo mal amanhado e cinzento, havia restos de palha e de erva que eram marcas da cama da véspera. Enquanto se aguentava em pé era divertido, fazia macacadas que punham as crianças a rir. Em bando corriam atrás dele, imitavam-lhe os gestos. E ele gritava de vez em quando Benfica! E todos se riam.
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Passava pela aldeia da minha Avó e o Quintal de São João que era propriedade dela, era um dos seus poisos. Tinha uma ruína do que em tempos teria sido uma casa e o Benfica achava o espaço muito aprazível.
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Na época, há uns 50 anos, na casa da minha família dava-se comida no prato a quem pedia. Um prato de sopa, algum conduto como se dizia, pão e até vinho e fruta. A loiça usada pelos pobres era depois desinfectada pelas "criadas" com água a ferver. Era assim na aldeia mas também em Lisboa, onde os cegos ainda cantavam na rua e o acompanhante, habitualmente um coxo, apanhava as moedas que lá de cima, do 3º, 4º ou 5º andar se mandavam embrulhadas num papelinho.
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O Benfica aparecia, ficava um ou dois dias e seguia viagem. Sempre bêbado e aparentemente bem disposto. Ou a cair para o lado e a adormecer. Depois ficava-se sem saber dele. Nunca soube se ele tinha uma rota fixa, ou era ao sabor das curvas etílicas que seguia. Sei que voltava sempre e atrevo-me a dizer, era esperado. Ninguém o enxotava, fazia parte da vida da aldeia, onde a passagem de um carro ainda era notícia.
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Teria eu 4 anos quando a minha Mãe tirou a carta e comprou um carocha, DD-38-19, cinzento prateado. Quando falávamos dele dizíamos o Voxinho, como se de uma pessoa se tratasse. Até tinha apelido também, por acaso os meus. Era um personagem importante na nossa família. Estando eu de férias com a minha Avó lá na aldeia, a minha Mãe apareceu de surpresa e sozinha a guiar o carro. Sozinha lá dentro porque atrás do carro eram bandos de miúdos a gritarem "é uma chófera, é uma chófera", correndo pelas ruas de pedra até à nossa porta.
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Um dia o Benfica foi apanhado nas malhas de um médico que resolveu reabilitá-lo, fazê-lo deixar o álcool. Enviado para Lisboa, foi internado no serviço que tratava dos alcoólicos. Tiraram-lhe o vício. Deixou de beber.
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Depois disso passou pela aldeia uma só vez. Numa árvore pendurou uma corda enforcou-se. Tinham-lhe tirado a única coisa que tinha e não lhe tinham dado nada em troca. No dia em que se soube da notícia, ficamos todos mais tristes.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Poema - Pedro Tamen

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Suspendo a mão entre o A e o B,
entre a minha vida e a vida que andará
dentro da minha vida.
E o mundo refloresce
com memórias de rios e montanhas
inundando estes mares de sal e carne
onde me afogo
para respirar.

domingo, 4 de abril de 2010

Aconteceu em viagem - 8 - Marrocos

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Ler tem sido o truque que arranjei para ajudar a passar o tempo enquanto pedalo na bicicleta do ginásio.
Agora estou com "As Vozes De Marraquexe", de Elias Canetti. É um livro de viagem que este Prémio Nobel da Literatura escreveu na sequência de uma ida àquela cidade marroquina em 1952.
Terá sido há cerca de 8 anos que lá estive, numa viagem razoavelmente longa e minuciosa organizada pelo meu primo Paulo, que conhece Marrocos quase como a palma da sua mão.
Aprendi logo à chegada que, sempre que me visse numa situação que eu considerasse perigosa, inquietante e me sentisse insegura, deveria pôr-me numa posição que um árabe, pelo seu código de honra, se sentisse na obrigação de me proteger. Nunca fugir. Fazer por exemplo uma pergunta de alguma coisa que eu não soubesse e lhe permitisse ajudar-me e por isso tornar-se meu protector.
Um dia, estando no deserto, resolvi subir a uma duna e deixei de ver os restantes membros do grupo. Melhor dizendo, não via ninguém, só as dunas com as suas areias douradas, de vários dourados pois a incidência do sol faz variar a cor. E um enorme silêncio. Só, estava mesmo só e isso era uma sensação muito boa.
Sem que eu tivesse tempo de dizer uma palavra, vejo um jovem adulto berbere, turbante azul à volta da cabeça, olhos verdes. Fiquei assustada, eu que me julgava sozinha e de repente...
Estava de maçã vermelha na mão e já lhe tinha dado uma dentada.
A minha primeira reacção foi oferecer-lha, e perguntei-lhe, "tu veux ma pomme?" Ele com uma voz muito doce respondeu-me "je voudrais bien, mais et toi?"
Fiquei emocionada! Eu que estava em hotéis de 5 estrelas, onde havia as maçãs todas que eu quisesse. Ele, ali no deserto, num acampamento, nómada...preocupado comigo, com o facto de eu ficar sem a maçã!
Aceitou-a e guardou-a no bolso. Desci a duna e nunca mais o vi. Assim como apareceu, sumiu.
A leitura do livro transportou-me de novo para Marrocos. Volta não volta lembro-me desta situação.
Foi um episódio tão bonito!

sábado, 3 de abril de 2010

Poema - Nuno Júdice

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GUIA DE CONCEITOS BÁSICOS
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Use o poema para elaborar uma estratégia
de sobrevivência no mapa da vida. Recorra
aos dispositivos da imagem, sabendo que
ela lhe dará um acesso rápido aos recursos
da sua alma. Evite os atolamentos
da tristeza, e acenda a luz que lhe irá trazer
uma futura manhã quando o seu tempo
se estiver a esgotar. Se precisar de
substituir os sentimentos cansados
da existência, reinstale o desejo
no painel do corpo, e imprima os sentidos
em cada nova palavra. Não precisa
de dominar todos os requisitos do sistema:
limite-se a avançar pelo visor da memória,
procurando a ajuda que lhe permita sair
do bloqueio. Escolha uma superfície
plana: e deslize o seu olhar pelo
estuário da estrofe, para que ele empurre
a corrente das emoções até à foz. Verifique
então se todas as opções estão disponíveis: e
descubra a data e hora em que o sonho
se converte em realidade, para que poema
e vida coincidam.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Aconteceu...enquanto se espera

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A "literatura" das sala de espera dos serviços de saúde é frequentemente pouco cuidada. É raro ter alguma qualidade, resumindo-se aos jornais gratuitos diários na maioria dos hospitais privados, revistas vulgares, de pouca qualidade, na maioria dos consultórios. No meu serviço, num hospital público, são os técnicos que levam as revistas depois de lidas em casa o que faz com que o stock seja mais ou menos renovado.
Às vezes há uns incidentes curiosos, pois por distracção e pouco cuidado também, reparamos um dia com uma revista com conteúdo tratado de forma sensacionalista que poderia perturbar os nossos utentes. Foi prontamente retirada.
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A sala de espera da clínica de fisioterapia onde fui esta semana estava cheia de doentes. É exígua, tem uma fila de cadeiras fixadas às paredes laterais deixando um corredor estreito onde uma cadeira de rodas eléctrica não cabe. Lá no alto uma televisão acesa mas sem som. Só um dos lados da sala a pode ver, arriscando-se a ficar com um torcicolo e necessitar de mais sessões. Senti-me claustrofóbica, perguntei quantas pessoas estavam à minha frente e saí. Quando volto já há lugar. Uma mesa pequena, também na continuidade das cadeiras, tem algumas revistas. Escolho uma e ponho-me a folhear. É de viagens e tem boas fotografias e convites para passeios e férias. As revistas estão com bom aspecto mas alguma coisa estranha me chama a atenção. Demoro um pouco a perceber. Depois reparo nos preços, pois é, estão em escudos. Procuro a data da revista - 2001. Pego noutra e vejo que é da mesma idade. A mais recente era de 2003. Grandes relíquias!
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A sala de espera, assim como o atendimento pela funcionária que o acolhe, é o primeiro contacto do utente com o serviço. É desejável não esperar muito tempo na sala. Mas enquanto se está que se tenha uma sensação de estar a ser acolhido, como se a um porto seguro se tivesse chegado. Então sim, poderemos pensar, dormitar, tentar conhecer os colegas de espera, ler, ...
Será pedir muito?