sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Aconteceu...Tanto entusiasmo para nada!

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Estava cheio de curiosidade, pela primeira vez ia passar a meia-noite a pé, a passagem do ano, a entrada do ano novo. Um enorme entusiasmo, mas... é que ele não sabia o que era o ano.
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E porque ninguém tinha percebido essa lacuna e lhe tinha dado uma explicação para o assunto, ele teve de usar da imaginação. E começar a pensar...
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O ano...será uma pessoa? Mas que tem de andar muito depressa, pensou ele, quando ouviu dizer que havia países onde ele já tinha entrado.
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Mas que esquisito, entrou novo...será da minha idade? Vou finalmente ter alguém com quem brincar? e entra novo em cada país e a tantas horas diferentes, não cresce? interrogava-se.
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Podia não ser uma pessoa, podia ser um monstro, pensou assustado, lembrando-se da Sra. Maria, a porteira, que um dia tinha falado no perigo do fim do mundo, que o ano a seguir era muito pior, e umas palavras que também não sabia o que queriam dizer, tais como crise, inflação e outras coisas assim. Mas se esperassem um monstro, fariam doces especiais? Só se fosse para ele comer e acalmar...
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A tarde foi avançando, caiu a noite, em casa a família estava satisfeita frente à televisão. Afinal, mas que o que será, já que até agora, com excepção de uns doces e de umas coisas que se chamavam passas era tudo igual ao que conhecia?!
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O sono era muito, quase nem conseguia manter os olhos abertos. Sentado no sofá, foi deixando cair a cabeça e adormeceu profundamente. O pai, com cuidado foi pô-lo na cama.
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E de manhã acordou, igual ao que sempre tinha sido. Fim-do-ano? Ano Novo? O que será? Talvez para o ano descubra!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Aconteceu...Foto

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................................Foto - Magda

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Poema - Jorge Gomes de Miranda

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MOLA DE ROUPA

Conservei-me afastada do estendal
durante algum tempo.
Sofro de vertigens, por isso
intimidava-me olhar para baixo,
o pátio vazio, restos de flores secas.
Um prédio com dez andares
e ele tinha logo que viver no último,
tendo como horizonte o mar
de terraços e antenas parabólicas.

Quando, chegado com a roupa
da máquina de lavar,
pega em mim,
de suas mãos eu deslizo para o chão.
Apressado, em vez de me apanhar
imediatamente, escolhe outra;
no final, atira-me para o cesto
de verga.

Não é que seja particularmente ardilosa,
mas verdade seja dita, preferia ser
mola de rés-do-chão,
dessas que faça sol ou chuva
sempre prendem a roupa numa corda
estendida no pátio.
O destino quis-me feita de plástico,
com um coração inclinado à melancolia.
Tenho, no entanto, como divisa
antes quebrar que torcer.

Sonho com o dia em que nas mãos da criança
serei um comboio.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Aconteceu...uma maldade feita a crianças

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Durante as férias grandes, os primos iam passar uns dias a casa dos avós. .
Um dia foram com os avós passar o dia a uma quinta. Tão diferente da vida habitual da cidade! Muito espaço para brincar, e umas capoeiras com galinhas, pintos e coelhos.
Com as duas mãos em concha e com muito cuidado, pegavam nos pintainhos amarelos, depois nos coelhos, tão fofos como os bonecos de peluche com que brincavam.
De volta para casa dos avós, cada um trouxe um coelho, com que brincava como se de um amigo se tratasse.
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Um dia acordam com uma má notícia. Um coelho tinha morrido, informou a avó. Ficaram tristes e choramingaram.
Dias mais tarde foi outro coelho, e passado uns dias o último também desapareceu.
Qualquer coisa fez com que os primos começassem a desconfiar, teriam comido os coelhos? E com horror confirmaram, que por sentido prático mas com insensibilidade lhos tinham servido à mesa. Tinham mesmo incorporado os amigos peludos!
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Zangaram-se muito com a avó.
E durante anos nenhum deles conseguiu voltar a comer coelho.
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Outro fim - depois do acontecido as crianças começaram "A negligênciar os estudos e tornaram-se vagabundas. Conta-se que se embebedavam e partiam vidros."* E nunca mais acreditaram nas avós.
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* in O Elefante, Mrozeck

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Aconteceu...Foto - Entre muros

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..............................................Foto - Magda

domingo, 26 de dezembro de 2010

Poema - Jorge de Sousa Braga

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A ÚLTIMA PINCELADA

Viveu em tempos um pintor que nunca conseguia acabar de pintar uma
ave, fosse ela uma cegonha ou uma garça. Quando se preparava para dar
a última pincelada, ela levantava vôo.

E o pintor ficava muito tempo ainda a persegui-la com o pincel no céu
azul...

sábado, 25 de dezembro de 2010

Aconteceu...Ladrões disfarçados e um Pai Natal amigo do Homem Aranha

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O entusiasmo era evidente, as crianças mal aguentavam o tempo que o jantar da consoada estava a demorar. Queriam era a hora das prendas que o Pai Natal ia trazer, como estavam acostumados.
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A noite estava muito fria. A televisão tinha estado a transmitir notícias do resto da Europa, aeroportos fechados, aviões em terra. A brincar alguém comentou Oxalá o trenó do Pai Natal tenha conseguido vir. As crianças ficaram inquietas, Mas se não vier...quem nos dá as prendas? Continuaram à espera, as horas passavam e já perto das 23 horas tocam à porta, É ele, é ele! gritam em conjunto, quase como se ensaiadas para um coro.
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Todos se dirigem para a porta, os adultos um pouco preocupados, mas quem poderá ser a esta hora? Espreitaram pelo intercomunicador, bem moderno, com imagem e tudo e ficaram perplexos, uma criança quase recem nascida, embrulhada numas palhas ao colo de uma mulher, mais um homem, um cão e uma ovelha, Por favor, abriguem-nos, pedem, a gruta abateu com o peso da neve, esperamos pelos Reis Magos e mais pastorinhos, mas precisamos de um tecto, isto dito com um tom seguro, demasiado seguro, diremos agora.
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Abriram-lhes a porta, Então não é que em vez do Pai Natal vem o Presépio?! comentam os adultos admirados, e eles entram para a casa, mais os animais, encostam-se à lareira acesa e aquecem-se.
Comem alguma comida que lhes é oferecida, um copo de vinho tinto, o bebé bebe leite, ainda bem que havia um "biberon" nesta casa dizem que à mãe ainda não lhe tinha subido o leite, se é que o viesse a ter, e roupinhas para o aquecer, de repente o casal puxa de umas armas escondidas dentro das roupas e gritam Mãos ao ar isto é um assalto! A família encolhe-se, junta-se a um canto como lhes ordenaram temendo pelo que lhes vai acontecer, enquanto eles remexiam em tudo e enchendo sacos com as coisas valiosas que foram encontrando.
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De repente, e sem que se tenha percebido como entraram, eis que o Pai Natal que aparece, renas e trenó na sala. Com uma teia igual à do Homem Aranha prendeu os meliantes.
Chamada a polícia, foram presos e desmascarados. À porta um "camion" TIR aguardava o produto do roubo. Aquela casa não era a primeira a ser assaltada.
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Posto o que o Pai Natal distribuiu as prendas. As crianças exaustas e assustadas começaram a recuperar, e já há risos e beijos.
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Adeus, adeus, o Pai Natal usa o terraço como pista de aeroporto e ruma ao céu.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Aconteceu...foto - À porta da loja

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..................................Foto - Magda

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Poema - Daniel Jonas

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PECADO CAPITAL

A Vitória de Samotrácia
é mais ou menos a minha história
sentimental: tinham todas um corpo
e asas até
mas pouca cabeça.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Aconteceu...ser mãe é...?

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"Sou muito amiga deles, eles sabem que faço tudo por eles, vivo por eles, para mim não quero nada, modéstia à parte não podiam ter melhor mãe."
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"Menina, então e tu não me ajudas? Vá lá, anda para aqui, não saias, o teu pai não está e eu fico sozinha."
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"O quê, então estas notas nos testes? Fazes-me isso, a mim, tua mãe, a tua maior amiga?! És um bocado ingrata!"
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"Não, não a prendo, mas não acha que me devia fazer um bocado de companhia? É que eu vivo para ela!"
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"Com o pai ela quer pouca coisa, é tudo mãe, mãe, mãe. Mas ele também não sabe ser pai, pensa mais nele que em nós. Eu cá por mim aguento, tenho-os a eles!"
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É difícil aguentar tanta frase de auto-elogio, de dádiva, de sofrimento, de culpabilização de certas mães.
Comportamentos de oposição, até mesmo de agressividade poderão, em certos casos, ser compreendidos nestas situações como tentativas de certos jovens de se separarem psíquicamente dos pais, crescer para a autonomia. Trabalho acrescido!

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Poema - Helder Moura Pereira

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Cheguei a ter medo de te perder,
Tu não chegaste a ter medo.
Este silêncio de já não termos palavras
Ouve-se nas outras palavras que trocamos.
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Miserável mundo nosso e alheio,
Igual ao que todos disseram da sua época,
E pior, porque este vivemos nós
E conhecemos nós, cada um conforme pode.
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Já morreram os ídolos da infância
E os da adolescência vão a caminho,
Sobrevivente é o teu olhar cego
(hoje já só há um dos Righteous Brothers).
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Na feira de velharias uma caixa
Para tabaco com uma rosa verde.
Tem o preço ainda em escudos, uma falha
Num dos cantos, uma pequena cruz de cal.
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Permaneces aí, à lareira, lendo livros vivos
E o seu turbilhão de palavras profundas.
Nunca mais chega o medo de nos perdermos,
Eco um do outro em ricochete de silêncio.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Aconteceu...relações de proximidade

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Esta cena passou-se num bairro de Lisboa onde ainda muita gente se conhece. Num supermercado com espírito e tamanho de mercearia.
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Sábado à tarde, muita gente faz as compras de fim-de-semana. A fila para pagar é grande. Falam entre si.
Olhe, falta um euro e vinte, diz a caixa para uma rapariga brasileira de criança ao colo que, mesmo sem haver caixa especial, todos a deixaram passar à frente. Um euro e vinte, repete a rapariga, sim, traz-me quando cá vier, fica cá o talão, e à frente dela escreve no talão que guarda na gaveta da caixa registadora. Não é bem vender fiado, mas faz-se um jeitinho quando falta um bocadinho. Obrigada, depois trago, diz a rapariga que sai carregada de criança que já trazia e os sacos que agora arranjou.
De repente a porta abre-se, entra uma mulher que diz "Vejam lá isto, para que é que eu fui ao cabeleireiro, e apanho com esta chuva logo à saída!?
Tirasse a cabeleira! diz bem alto e dirigindo-se a ela uma senhora que está na fila, assim não a molhava e em casa punha-a. Risos vários.
Venho cá a ver se me emprestam um guarda-chuva, haverá por aí algum?
Há para aí muitos sacos de plástico, diz outra, ponha um na cabeça!
Ora, e mostra um que tem na mão, isso deu-me a cabeleireira. Mas não haverá por aqui algum guarda-chuva a mais?
Vá lá dentro ver, diz a menina da registadora, vá lá à casa de banho, talvez haja um a mais.
E o seu netinho, deve estar grande, nunca mais o vi por aqui, diz-me a menina da caixa quando chega a minha vez. Lá lhe dou notícias, pergunto pela filha dela, adeus até à próxima, e lá vou debaixo de chuva com o carapuço de anorak na cabeça.
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Este diálogo vivo, nunca poderia acontecer num hipermercado. Os produtos serão um pouco mais baratos, aceito, mas o aspecto humano que se vive por aqui tem o seu preço.
O anonimato e a indiferencia são factores de risco para a saúde mental. Estar contido em qualquer coisa, identificar-se, fazer corpo com, como numa pequena aldeia, é uma sorte que se pode ter!

sábado, 18 de dezembro de 2010

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Poema - Adília Lopes

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OS PAPELOTES
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Nunca choraremos bastante
termos querido ser belas
à viva força
eu quis ser bela
e julguei que para ser bela
bastava usar canudos
pedi para me fazerem canudos
com um ferro de frisar e papelotes
puxaram-me muito pelos cabelos
eu gritei
disseram-me para ser bela
é preciso sofrer
depois o cabelo queimou-se
não voltou a crescer
tive de passar a andar com uma peruca
para ser bela é preciso sofrer
mas sofrer não nos faz forçosamente belas
um sofrimento não implica como consequência
uma recompensa
uma dor de dentes pode comover a nossa mãe
que para nos consolar sem saber de quê
nos dá um rebuçado
mas o rebuçado ainda nos faz doer mais os dentes
a consequência de um sofrimento
pode ser outro sofrimento
a causa é posterior ao efeito
o motivo do sofrimento é uma das consequências
do sofrimento
os papelotes são uma consequência da peruca

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Aconteceu...tanta electrónica, bolas!

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Apesar da crise, li que os pagamentos feitos com os cartões de plástico mantêm valores altos.
As lojas parecem bastante vazias, mas os terminais não se devem enganar.
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Vejo crianças com brinquedos caríssimos, em famílias que certamente têm dificuldades. A sociedade de consumo e os sentimentos de inferioridade "obrigam" a estas "necessidades".
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Está a haver uma dificuldade de se criar brinquedos com as coisas simples que nos rodeiam. Estão desprezados face aos electrónicos. Mas não haverá lugar para todos?
As caricas que faziam de automóveis, e competiam em pistas feitas na terra, as bonecas feitas de trapos que eram tratadas com tanto desvelo como a mais sofisticada Barbie, as espadas feitas de bocados de madeira, caixinhas, molas de roupa, restos de objectos transformados e com os quais um mundo de fantasia era criado, e tantas outras coisas, não preenchiam e divertiam tanto?
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Em certas famílias parece haver uma diminuição do relacionamento e da criatividade. Os jogos que uniam e divertiam as famílias, juntando várias gerações, parecem estar esquecidos. Muitas famílias brincam pouco ou nada com os filhos, as conversas deixam de se fazer, algumas passam os serões e os fins-de-semana agarrados à televisão, e última das minhas descobertas, famílias em que há um computador por pessoa e que estando na mesma casa falam entre si por Messenger!
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Era bom que neste Natal, as famílias pudessem inventar com os filhos qualquer coisa que os junte sem máquinas, descobrir dentro de cada um e em conjunto as potencialidades escondidas, hoje tapadas pela tecnologia.
Gastava-se menos e seria muito melhor para todos!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Poema - Al Berto

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APAGA AS ESTRELAS

No centro da cidade, um grito. Nele morrerei, escrevendo o que a
vida me deixar e sei que cada palavra escrita é um dardo
envenenado. Tem a dimensão de um túmulo e todos os teus gestos
são uma sinalização em direcção à morte.
Mas hoje, ainda longe daquele grito, sento-me na fímbria do mar.
Medito no meu regresso.
Possuo para sempre tudo o que perdi, e uma abelha pousa-me no
azul do lírio e no cardo que sobreviveu à geada. Bebo, fumo,
mantenho-me atento, absorto - aqui sentado, junto à janela
fechada. oiço-te ciciar: amo-te, pela primeira vez, e na ténua
luminosidade que se recolhe ao horizonte, acaba o corpo. Recolho o
mel, guardo a alegria, e digo-te baixinho:
Apaga as estrelas, vem dormir comigo no esplendor da noite do
mundo que nos foge.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Aconteceu...alimentar pela boca e pelo coração

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É curioso e todos já dissemos ou ouvimos uma pessoa dizer, normalmente com funções maternas, que "ela não me come nada". A alimentação, o acto de alimentar é o protótipo da relação humana, a comunicação primeira que é suposto satisfazer a criança e fazer crescer.
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Conhecemos como às reuniões de amigos raramente falta comida, nem que seja um petisco acompanhado de uma bejeca ou um chá com umas bolachinhas.
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As mães preocupam-se quando os filhos não comem o que elas acham ser necessário. Isto do necessário varia muito com a pessoa, há os de grande alimento e os que se satisfazem com pouco. Curiosamente, de uma maneira geral, as mães preocupam-se menos com os filhos que comem demais, embora esteja bastante divulgado o problema da obesidade; e sabemos também que muitos comem para tapar o buraco afectivo que sentem. Sem nada que fazer? umas bolachas; aborrecido? mais outras; irritado? come-se qualquer coisinha que acalma. Mas isto do "apetite" do outro, satisfaz quem cozinha ou alimenta.
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Quase todos temos lembranças de comidas que alguém nos fazia e que sabia muito bem. Há quem tome isso à letra e tente satisfazer esse desejo, "cozinhando como a tua mãe", e se sinta frustrado porque, está bem de ver, não é só a comidinha mas a relação que a ela estava ligada.
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Isto vem a propósito da comida dos hospitais públicos e que é servida aos familiares e aos funcionários, a preços muito aceitáveis, certamente subsidiados, de cantina pública.
Está muitíssimo melhor do que era, eu que a conheço há décadas.
Não pensem que é alguma coisa do outro mundo, mas há sopa, um ou dois pratos fruta ou doce e um buffet de saladas à escolha que vejo ser muito apreciado. A comida é razoavelmente cozinhada e tem apresentação normal.
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E acho isso muito importante, é uma forma de receber e abraçar os familiares que, sabe-se lá com que desamparo, têm um seu filho internado.
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Com os 15% de poupança que a saúde vai sofrer este ano, desconfio que esta comida decente, pode ser uma das primeiras coisas a sofrer um corte.

domingo, 12 de dezembro de 2010

sábado, 11 de dezembro de 2010

Poema - Fiama Hasse Pais Brandão

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O MELRO

Tanto quanto eu, ele ama
as folhas secas, debica-as
e devora-as. Está a procurar
debaixo da face da folha
os vermes. Percorre com apuro
recessos, as nervuras.
Trabalha com amor
para a sua memória.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Aconteceu...memória do elevador dos pratos

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A casa dos avós era grande.
A cozinha era no rés-do-chão, a sala de jantar no 1º andar. Uma por cima da outra. Para não se andar escada acima escada abaixo, havia um pequeno elevador manual transportava a comida e os pratos da copa, junto à cozinha, para a sala. Cá em cima, uma empregada puxava ou segurava a corda, punha ou tirava conforme a tarefa necessária.
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Este elevador era um fascínio para nós, crianças, que com os nossos pais morávamos em andares.
De férias lá em casa, sonhávamos sermos nós os transportados. Imaginávamos um de nós podia ir lá dentro e os outros dois a puxarem ou segurarem o elevador.
Claro que certamente ele dispararia em velocidade e eventualmente bateria com força no chão. Com um de nós lá dentro, com propriedade deveríamos dizer "bater com os ossos no chão".
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Não teremos avaliado o perigo de forma consciente, mas tinhamos alguma noção dele e também do interdito, que não teríamos o apoio dos adultos. Fazíamos então os "preparativos" às escondidas, que não passavam de "preparativos", de fantasias aventurosas.

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Nunca chegamos a descer. Não sei se alguém falou, se foi adivinhação dos avós, mas a regra que o elevador era só para pratos foi explicitada e nunca tivemos coragem de desobedecer.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Poema - José Jorge Letria

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QUANDO EU FOR PEQUENO
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Quando eu for pequeno, mãe,
Quero ouvir de novo a tua voz
Na campânula de sons dos meus dias
Inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
Com a certeza dócil de que só o empedrado
E o cansaço da subida
Me entregarão ao sossego do sono.
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Quando eu for pequeno, mãe,
Os teus olhos voltarão a ver
Nem que seja o fio do destino
Desenhado por uma estrela cadente
No cetim azul das tardes
Sobre a baía dos veleiros imaginados.
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Quando eu for pequeno, mãe,
Nenhum de nós falará da morte,
A não ser confirmarmos
Que ela só vem quando a chamamos
E que os animais fazem um círculo
Para sabermos de antemão que vai chegar.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Aconteceu...7 de Dezembro 2009 - 7 de Dezembro 2010

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"Certos Dias Acontece" faz hoje 1 ano!
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Começou por ser um espaço a que me "obriguei" a vir escrever regularmente, na sequência de ter ficado imobilizada em casa depois de ter partido um pé.
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Se reconheço que pode ser óptimo não ter obrigações e ter o tempo à nossa disposição, também sei
que os marcadores do tempo são organizadores da vida.
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Para o crescimento e para a organização mental de uma criança, as marcas do dia com as suas actividades entre elas é fundamental. Pequeno almoço, almoço, lanche, jantar, aulas, brincar depois de estudar, dormir à noite, pode parecer rígido. Mas é muito importante. Vemos as dificuldades de crescimento harmonioso das crianças com meios familiares desorganizados e onde esta regularidade não acompanha os outros cuidados necessários.
Sabemos, como uma pessoa adulta deprimida ou desorganizada psiquicamente pode não se dar conta que anda com horas trocadas, que se esqueceu de almoçar, de compromissos às vezes importantes.

O blog apareceu assim, num período pouco movimentado da minha vida, e teve também com uma função defensiva, com a sua estrutura alternada e organizada de texto, poema, imagem. E pouco a pouco comecei a divertir-me com ele, a entusiasmar-me e ele começou a fazer parte da minha vida. A minha escrita aqui passou a ser um marco afectivo diário.
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Meses mais tarde o pé sarou, e a minha actividade habitual recomeçou. Mas o blog continuou.
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Os textos são curtos, fruto da minha experiência de vida, viagens, comentários de notícias e aqui e ali com apoio do meu conhecimento profissional.
Os poemas fazem parte de um bocadinho da minha leitura diária.
As imagens, essas tiveram alguma evolução. Diminuíram os vídeos retirados da net, que também exigem mais tempo para a pesquisa, e aumentaram as fotos que são um pouco do meu olhar.
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Pouca gente escreve comentários, embora por outras vias receba algumas opiniões. Mas um contador de visitantes mostra que passam por cá, até ao momento de publicar hoje, 8839 passaram.
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Cá continuarei... enquanto me der prazer!

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Aconteceu...Foto - Núvens negras ganham terreno

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............................................Foto - Magda

domingo, 5 de dezembro de 2010

Poema - Adília Lopes

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Houve um momento
em que deixei de gostar
da minha mãe
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Houve um momento
em que deixei de gostar
do meu pai
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Houve um momento
Em que deixei de gostar
De mim
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Houve um momento
em que deixei de gostar
de ti
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Houve um momento
Em que parti
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Houve um momento
Em que voltei
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Houve um momento em que voltei a gostar de todos
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E todos estão aqui
Mortos
E ausentes

sábado, 4 de dezembro de 2010

Aconteceu...Há quem tenha os pais unidos pela raiva

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Desde cedo que se acostumou a ver os pais discutirem. Eu disse acostumou? Disse mal, devia ter dito ouviu, porque nunca isso se tornou para ele como uma coisa normal.
Insultos, gritos dos pais, e ele a gritar, com as mãos a tapar as orelhas e a pedir que parassem, deixassem de gritar, mas sem que eles o ouvissem.
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Alguns anos mais tarde, ainda ele era pequeno, ouviu uma nova discussão e viu o pai passar por ele, bater com a porta e não voltar nesse dia a casa. Nem no outro, nem no outro... até que a mãe lhe começou a dizer que tinha sido bom, que o pai era muito mau e assim podiam os dois viver sós e felizes.
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E todos os dias lhe lembrava que o pai era mau. Mas ele também se lembrava de jogar à bola com ele, comer algodão doce lá na feira da aldeia, e até armar costelas para apanhar os pássaros. E tinha saudades de estar com o pai...
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Um dia soube que o pai o queria também, para viver com ele. E nova guerra se desencadeou, aqui com Tribunal à mistura. E passou a estar em casa da mãe umas semanas e em casa do pai noutras.
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Era um verdadeiro calvário quando tinha de trocar de casa, um interrogatório completo lhe era feito, tanto pelo pai como pela mãe. E críticas, críticas, críticas. A certa altura sentia-se confuso. Serão para mim? pensava. Como fugir disto, tão pouco crescido que era?
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Muitas crianças vivem esta vida. A raiva que a separação e por vezes nem a constituição de uma nova família deixa de existir entre os pais. Pais unidos pela raiva.
Este ambiente cerca as crianças e destroí-as. Sofrem.
Mergulhados neste caldo raivoso, os pais nem se apercebem como estão a destruir os filhos, a inquinar-lhes a existência actual e a futura.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Aconteceu...a ilusão da fragmentação do Sol

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.............................................Foto - Magda

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Poema - Filipa Leal

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QUARTO MINGUANTE

Os adolescentes da cidade
deitavam-se cada vez mais cedo.

Faltava-lhes o espaço para a náusea
desse lugar diminuto,
desse tédio
que só no quarto a sós
lhes denunciava a paixão.

Os adultos da cidade
deitavam-se cada vez mais tarde.

Não suportavam a náusea
desse lugar diminuto,
desse tédio
que no quarto só
lhes denunciava a solidão.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Aconteceu...precisamos de ser mais simples e sentirmo-nos bem!

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Vivemos rodeados de hábitos, exigências, insatisfações.
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Conheço famílias que me contam que compreendem a insatisfação dos filhos, quando os pais não lhes podem comprar roupas e ténis de marca. Outras crianças querem e exigem, mesmo em famílias a raiar a economia medíocre, computadores e jogos electrónicos.
A insatisfação é mais manifesta quando as famílias se sentem inferiorizadas por não lhos poderem comprar, e vivem isso de forma desnarcisante.
E não há bom senso a que se apele.
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Há tempos vi uma senhora a dar pão a pombos no jardim. Em conversa explicou-me em poucas palavras porque o fazia, "coitados, eu também já passei fome".
Eu que não gosto de pombos na quantidade que há por Lisboa, fiquei sem palavras, compreendi-a.
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Vi um dia destes na televisão, uma aldeia quase cercada pela neve. O isolamento é quebrado pela carrinha do padeiro que com esforço para lá se dirige diariamente. E duas pessoas disseram coisas que deveriam ser ouvidas por muita gente, e cito de cor.
"Com pão e água já ficamos bem" disse uma senhora depois de comprar o pão; e "a minha senhora comprou ontem e ainda lá temos, hoje não é preciso, compro amanhã", disse um homem.
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Nem tanto ao mar nem tanto à terra, mas precisávamos de poder viver assim mais simplesmente.