quarta-feira, 31 de março de 2010

Poema - Eugénio de Andrade

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Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.
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Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.

terça-feira, 30 de março de 2010

Aconteceu... num programa de cultura

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Momento subversivo pela desconstrução da lógica vigente e esperada, aconteceu já há bastante tempo num programa Câmara Clara da RTP2 da Paula Moura Pinheiro.
Porque o revi e me diverti novamente, aqui está, com Alberto Pimenta e Vitor Silva Tavares

segunda-feira, 29 de março de 2010

Aconteceu...no Serviço Médico à Periferia - 4

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Não conhecia aquela doente. Era a primeira vez que vinha ao posto depois da minha chegada. Iamos começar, tal como com todos os outros, eu a conhecê-la e ela a descobrir a doutora novinha que veio lá de Lisboa. Falhamos ambas.
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Durante muitos anos aquele posto clínico tinha estado fechado por não haver médicos colocados. A não ser o local, que morava na vila a uns poucos quilómetros de distância de onde nos encontravamos e que tinha o seu consultório particular no 1º andar esquerdo de um prédio de rés-do-chão e primeiro. Porque estou com estes pormenores? É que o 1º andar direito era o posto da caixa. A partir de certa altura ele não trabalhava na caixa e quem queria virava-se para o outro lado do patamar e ia ao privado.
Ao contrário de certos colegas a que normalmente chamamos de João Semana e em quem vemos qualidades de dedicação e empatia, generosidade extrema, que chegam a exercer a medicina quase como se de um sacerdócio se tratasse, aquele era arrogante e omnipotênte. Tinha tudo e todos na mão e não gostou nada que as colegas tivessem sido colocadas durante um ano na sua terra e a fazer a volta pelos vários postos existentes. Via nisso um perigo para o seu feudo privado. Ele e a mulher que o secretariava no consultório e sussurrava (às vezes bem alto) que aquelas doutoras de Lisboa deviam ser comunistas. Onde foi arranjar aquela ideia não sei, mas era uma boa forma lá para aquelas bandas, de tentar criar um clima de insegurança com rejeição. Não conseguiu, felizmente, que a pouco e pouco caimos nas graças da população.
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Dizia eu que não conhecia a doente. Não me lembro porque foi à consulta, mas fiz como é da prática, depois de um introito social, uma escuta para recolha do motivo da consulta, sintomas e os antecedentes pessoais. Faltava a observação directa.
Ainda na secretária pedi à senhora que esticasse o braço, com a manga arregaçada e medi-lhe a tensão arterial. Em seguida pedi-lhe que se sentasse na marquesa depois de despir a camisola para eu a poder auscultar. O que eu fui pedir... Quase de imediato a doente pôs-se em pé e aos gritos dirigiu-se para a porta. Era o que faltava, vêm estas de Lisboa e mandam despir uma pessoa! O Dr. J. sempre me auscultou por cima do casaco, era o que faltava, a mim não me apanha cá mais!
E saiu continuando a vociferar contra as modernices de Lisboa.
Nunca mais a vi.

sábado, 27 de março de 2010

Poema - Armando Silva Carvalho

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MEIO-DIA, severo e uno, sol duro.
As mães cruzam com os filhos
À hora de repartir
A justiça.
Os corpos sabem da separação
E não conseguem falar.
As mãos fazem e desfazem
Os jogos.
O cérebro reflecte o sol,
O rigor da ciência,
A lúcida tristeza, a exacta natureza
Da lei.
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Caminhamos ao lado do mundo
E não aceitamos
Este sol
Impiedoso da verdade.
E vamos a meio do rio, destacados
E nítidos.
A erva já não canta, e de manhã cantava
A inocência.
A luz cega agora os passos
Que parecem dançar à beira dum passado
Pessoano,
Fluentes, independentes,
Pós-modernos.
Aqui à beira do sol fixo
Como uma planta asfixiada pela luz
Que lhe dá vida.
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Armando Silva Carvalho

sexta-feira, 26 de março de 2010

Aconteceu...que apareceu

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Como não esperava que o jovem Leandro que se atirou ao Rio Tua aparecesse com vida, foi com alívio que soube que o corpo tinha sido encontrado.
São imensas as histórias que conhecemos de pessoas de quem apesar de certamente mortas, o corpo nunca apareceu. Conheço até algumas famílias que durante anos receberam telefonemas silenciosos em dias especiais, como o aniversário ou o Natal, o que as fez ter sempre a ilusão de que o desaparecido não morreu e manter viva a esperança de um dia o poderem abraçar.
O aparecimento do corpo e as cerimónias de culto habituais, sejam elas quais forem, são importantes para se poder iniciar o trabalho de luto.
Que será sempre incompleto, quando se trata de um filho.
Como dizia uma mãe a quem morreu um filho, numa definição muito correcta, é uma doença crónica com a qual se terá de viver para sempre.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Poema - Alberto Pimenta

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CIVILIDADE
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não tussa madame
reprima a tosse

não espirre madame
reprima o espirro

não soluce madame
reprima o soluço

não cante madame
reprima o canto

não arrote madame
reprima o arroto

não cague madame
reprima a merda

e quando estourar
que seja devagarinho
e sem incomodar, ok madame?

ok, monsieur.

terça-feira, 23 de março de 2010

Aconteceu... que eu tive um Titi

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..."Uma vez, enquanto o velho Selim observava o céu em busca de inspiração, reparei, para minha grande surpresa, que perdera os dentes, com excepção de um único, espetado, como um turbante, na gengiva inferior. Explicou-me com muita propriedade, que aquele dente garantia o equilíbrio das suas composições caligráficas, pois era nele que apoiava a língua enquanto trabalhava."...
in " A Noite dos Calígrafos" de Yasmine Ghata
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O Titi tinha sempre a língua ao canto da boca quando tocava piano, o que fazia muitas das vezes que eu o via. Entrava em casa da Mãe, minha Avó, e pouco tempo depois já estava ao piano, conosco à sua roda, atentos e espectantes, muitas vezes com movimentos ritmados das cabeça ou das mãos acompanhando as melodias que dos seus dedos compridos iam saíndo enquanto afagava as teclas.
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Muitas vezes chegava e tirava do bolso um caderninho de capa laranja onde tinha escrito umas notas. Acontecia que quando ia no carro e ouvia uma música que gostava, encostava ao passeio e com o seu ouvido puro tirava umas notas que, em casa, lhe iriam permitir reconstruir a melodia.
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Outras vezes, no fim dos almoços de família, fazia escalas com os copos, acrescentando ou retirando líquido de modo a obter o tom desejado. Eu tentava sempre ajudá-lo, diziam que eu tinha bom ouvido, mas nada como o dele, inegualável. Depois com uma faca fazia música escolhendo qual o copo onde bater. Às vezes lá se partia um copo mas a Avó não se zangava, a festa era mais que compensadora.
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O Titi em criança dizia que queria ser Faz-tudo. Tinha uma enorme admiração pelo circo e pelos palhaços. Retirei benefício deste seu gosto e herdei-o, porque enquanto solteiro, levava-me sempre com ele. No intervalo do espectáculo parece-me que me lembro que me levava a cumprimentar o Luciano, um dos faz-tudo do Coliseu, na altura.
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Ao ler do velho Selim, lembrei-me das inúmeras vezes que lhe tentei tocar na língua com o meu dedo, enquanto ele tocava piano. Tentava afastar a cabeça, recolhia por breves instantes a língua e o resultado era que se enganava sempre. Mas nunca se irritava comigo.
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Todas as crianças deviam ter um Titi, assim como um Lugar ou uma aldeia. Faz parte das necessidades do crescimento que deixa recordações saborosas e doces.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Aconteceu... Maquinim, objecto de poesia espacial

.........................Mobile em aço inoxidável - Salette Tavares

domingo, 21 de março de 2010

Aconteceu...hoje, Dia Mundial da Poesia

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Sabia que hoje, Dia Mundial da Poesia, o CCB tinha um dia de actividades ligadas à poesia; sabia que este ano a Poetisa Salette Tavares iria ter um espaço de exposição e leitura de poemas seus.
O que não fazia a mínima ideia, quando esta manhã postei o poema "O Bule", é que de tarde o iria ouvir dito pela Ana Hatherly. Foi sublime!

Poema - Salette Tavares

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O BULE
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Bule bule bule bule bule bule bule

a palavra parece a água a borbulhar

bule bule bule bule bule bule bule

a água a ferver.

Bule bule bule___o bule aquece o bule bule

deita-se o chá e o bule bule bule bule

bule bule bule vezes sete deita-se a água

bule bule bule bule a água a ferver

bule bule bule ____ o bule serve o chá.

Beber ____ é matar _____a sede.

Bule bule bule bule bule bule bule

Beber ____ é o acto sagrado_____de matar

a sede. Bule bule bule bule o bule é o receptáculo

escuro _____________________da morte.

Bule bule bule bule ______o bule é o tabernáculo.

O bule não é o copo _______bule bule bule bule

o copo é o receptáculo claro _____________da morte

da sede._Mas o bule é divino_____________e raro.

Escuro ______o bule

bule bule ____ o chá é divino e puro.

Sabedoria. Bule bule bule bule bule

Faço a cerimónia do chá cinco vezes por dia.

O bule está quente.

O bule está morno.

O bule está frio.______Sophia!

As mãos acompanham em concha

o bojudo do bule companheiro… bule bule

bule bule bule __todo o dia.

As tisanas são assunto ____da Ana

Hatherly.

Bule bule bule bule bule bule bule

com asa e bico bule bule bule bule

o bule é a ave do espírito _______santo

em si.

Garça_pato_cisne_cegonha_avestruz

conforme o bule o pescoço varia

e produz bule bule bule bule

uma chávena de Universo

inteiro.

O bule é o sacrário________por isso

Beber chá é beber ___ a noite e o dia

é sorver bule bule ___ o enigma primeiro.

O bule cheio bule ____é o ventre relicário

do chá ____bule ____ meu néctar

verdadeiro bule bule bule bule claro

meu alimento bule bule bule __caro.

Bule bule bule bule bule bule bule.

_______________BULE.

sábado, 20 de março de 2010

aconteceu estar a ler - 3


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Com a fractura do meu pé, experimentei primeiro a imobilidade, depois as saídas curtas amparada por canadianas e a receber o olhar cusca-piedoso de quem comigo se cruzava, como escrevi numa postagem.

Agora, já livre das pernas extra, vejo-me diariamente a fazer exercícios para repôr o meu pé, que coitado ficou com a posição em que o gesso o manteve durante quase 4 meses, e fortalecer os meus músculos, que ficaram moles de tanto tempo estive sentada.

Assim todos os dias rumo para um "wellness center" com piscina aquecida, ginásio, aulas de várias modalidades, um bom café-restarante, sauna, sala de leitura, um ambiente bem luminoso, cheio de janelas e ar muito agradável.

Chego, bebo o café e parto para uns quilómetros de biciclete. Tal como os outros companheiros de pedalagem, olhava para os écrans que à minha frente vão passando vários canais de cabo. Era uma chatice, estar ali a olhar para as séries que não acho graça nenhuma do AXN, ou ver a SIC Notícias sem som ou ainda uns canais de música ligeira sem som ou, claro os canais de desporto. As bicicletes que monto não estão ligadas ao som, pelo que, mesmo depois de comprar uns auscultadores, continuei sem ouvir nada.

Resolvi iniciar a técnica que já usava durante os tratamentos que desde há anos faço nas Termas das Caldas da Felgueira, ou seja ler. Escolho um livro maneirinho, letra grande e tempo passa mais depressa e de forma mais agradável e útil.

Há poucos dias começei e acabei hoje, A Herança de Eszter, de Sàndor Márai. É o 3º livro que leio dele e que gosto. Bem escrito, uma história sempre interessante.

E acabado este "passeio", passeio-me pela piscina, já sem livro.

Não imaginava o movimento que têm estes "healths clubs", ginásios, SPAs, como lhe queiram chamar. A toda a hora, já fui em dia de insónia matinal, às 7horas, e lá estava já muita gente, uns grupos que fazem uma bicicletadas simultâneas com coreografia de exercícios, aulas de bodys qualquer coisa (há imensas modalidades), aparelhos, água etc, o mesmo a meio da manhã, tarde e serão. Fecha às 22h30.

Sem dúvida que há uma ditadura do corpo, do aspecto físico certamente e talvez também da saúde.

Acabada a recuperação do pé, estarei eu a entrar nessa?

quinta-feira, 18 de março de 2010

Poema - Manuela Parreira da Silva

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Entre os grãos de areia, acha-se, às vezes, um barco naufragado.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Aconteceu...a propósito do vídeo de ontem

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Não sei se aconteceu aquele telefonema, mas vou acreditar que sim, quanto mais não seja para poder fazer alguns comentários.
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Ao ouvir o vídeo, notamos estarmos perante uma miúda certamente inteligente, que usa a linguagem de forma desenvolvida.
Incomoda o aparentar uma segurança pouco habitual naquela idade. Segurança, determinação e frieza, para além de uma ausência de sentido moral.
A miúda tem a iniciativa de telefonar, sabe expôr perfeitamente que está desgostosa com a escola, os professores que a mandam trabalhar mais do que ela desejaria, e resolve o problema com grande limpeza, imaginando um plano para acabar com todas estas coisas aborrecidas: deitar a escola abaixo e matar todos os professores.
Curioso que não falou nos colegas, terá pensado neles?
E do outro lado do telefone, temos umas pessoas que receberam o telefonema e todas estas ideias da miúda. Inicialmente há uma senhora que fica francamente perplexa, pelo que muda para um colega, e acabam rindo, divertidíssimos e até apoiando a ideia.
Não há nenhuma conversa no sentido de perceber melhor a miúda, o incómodo dela, saber quem é, ajudá-la a pensar que talvez há-ja outras soluções para a poder ajudar a resolver tal desgosto. Só há uma breve tentativa, mal sucedida, de saber qual a escola.
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Lembrei-me das linhas SOS, SOS criança, SOS suicídeo, SOS vítimas da violência e outras, em que, pela escuta atenta e empática se ajudam crianças e adultos, encaminhando-os se necessário para serviços especializados.
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Há um aspecto que me parece muito importante de salientar e que muitas vezes não é entendido. Pensar, falar e fazer são coisas de nível completamente diferente. Podemos e devemos pensar tudo o que nos vem ao pensamento.
Já só diremos algumas dessas coisas, que para isso temos a nossa capacidade cognitiva que nos ajuda a compreender os nossos sentimentos, e temos o sentido de moral, que pela crítica nos organiza a repensar o pensamento.
O fazer, a acção, essa já passa pelos filtros anteriores do falar e outros bem mais apertados.
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O menina do telefonema do vídeo deixou-me incomodada.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Poema - Carlos de Oliveira

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SESTA
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Dentro do bosque
os passos dum caçador.
Dentro da sombra
a cobra do calor.
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E dentro do meu sono
outro sono maior.
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Estalando as folhas secas
vai a cobra invisível.
Nas mãos do caçador
ainda a vida é plausível.
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Só dentro do meu sono
todo a morte é possível.

sábado, 13 de março de 2010

Aconteceu...ainda a propósito da escola


Estas semanas foram "ricas" em acontecimentos que puseram a escola nas primeiras notícias, com o alegado suicídio de um aluno de 12 anos e o suicídio de um professor na casa dos 50 anos.

Muitas coisas se dizem, muitas se escrevem, muitas se silenciam.
Nos casos de suicídio, a propaganda do facto não é bem vinda e pode ser muito contraproducente. É conhecido o fenómeno do "contágio".

No entanto o silêncio do Conselho Executivo da escola de Mirandela parece demasiado. Um breve comunicado teria sido bem vindo. O contacto com a família teria sido obrigatório, seria o mínimo da solidariedade e empatia com ela.
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É grave o que se anda a dizer e a escrever, que o professor da escola de Fitares se suicidou por causa dos alunos. A causalidade linear há muito foi posta em causa. Há a considerar sempre características pessoais internas e factores externos. As dificuldades em gerir no momento a sua profissão, poderá ter sido um factor precipitante, uma vez que seria do conhecimento da escola as dificuldades que o professor teria com os seus alunos. Li que ele fez várias participações a quem de direito na escola e que nada foi feito. Veremos isto como uma ausência de solidariedade de classe?
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Quando alguém está em sofrimento, não será mandatório estudar o assunto e tomar medidas rapidamente? Fazer com que a pessoa sinta que já não está só?
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O suicídio resulta do sentimento de impossibilidade de descobrir uma saída. No entanto há sempre alguma. E quando não a descortinamos a sós, precisamos de a procurar em conjunto com alguém. Frequentemente o suicidário está deprimido, o que faz com que pense tudo de forma negativa.
Só a morte não tem retorno. Por isso tem de ser evitada com uma intervenção solidária, activa a vários níveis, que parece que não terá existido de forma suficiente em nenhum dos casos.
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sexta-feira, 12 de março de 2010

Poema - Mário Cezariny

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JORNAL

Da janela à rua. Feliz dia.
À serra da Estrela, um nevão.
Vinte defuntos na Turquia.

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Memórias do grande homem no verão.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Aconteceu...a propósito de escola

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Conforme se pode ver pelo emblema que tenho neste blog, fui aluna do Lycée Français Charles Lepièrre em Lisboa. Andei lá da infantil até ao último ano do liceu. Dali passei para a faculdade.
Era um ambiente diferente dos liceus daquele tempo, escola mista, bilingue, com um naipe de professores especiais, antifascistas, alguns até proíbidos de trabalhar nos serviços públicos e que, mesmo a propósito da matéria obrigatória nos ajudavam a problematizar e pensar. Os alunos, com raras excepções, eram filhos da burguesia que tinha dinheiro para pôr lá os seus filhos e com acesso a meio cultural privilegiado.
No meu 1º ano da faculdade, assisti a uma enorme discussão entre colegas, por motivo que já não me recordo. Mas lembro-me que ao chegar a casa, contei o episódio ao meu pai, rematando com ar crítico que a colega parecia uma peixeira. Com o ar sério que lhe conhecia, ele chamou-me a atenção que talvez ela fosse de facto filha de uma peixeira, eu já não estava no meu liceu e agora poderia ter filhos de gente mais popular. E que eu devia ter sempre isso em atenção e respeitar todos. Foi uma conversa que me marcou, talvez por estar farta de o saber pela educação que tinha recebido, mas que na hora, não tinha sabido aplicar.
Os meus filhos, tirando a infantil e a pré primária andaram sempre em escolas oficiais. Foi uma opção muito pensada, já lá vão uns anos. Correu bem, tiveram regra geral bons professores, quase todos do quadro da escola, turmas razoaveis. Tiveram alguns "encontros imediatos" que me parece foram capazes de resolver com "souplesse" e que não deixaram marcas, mas tão somente histórias para contar e rir.
Constato que muito mudou neste tipo de escolas, frequência massificada, onde por necessidade (?) o nivelamento do ensino está a fazer-se por baixo.
São as instalações, o staff dos professores nem sempre com o mesmo nível, os auxiliares, as condições de segurança, os apoios em falta, a instabilidade das carreiras, tantas falhas que tornam o ensino mais fraco e a escola mais insegura.
Preocupa-me que o nível de desenvolvimento cultural e emocional dos colegas nem sempre seja factor de estimulação.
Já faltou mais para que os meus netos entrem para a primária. Não posso ter intervenção na escolha que os pais farão da escola, mas lá que, silenciosamente penso e me inquieto, ai isso é verdade.
Há muito trabalho a fazer neste campo para que possamos, com tranquilidade, perspectivar o futuro escolar das nossas crianças.

terça-feira, 9 de março de 2010

Poema - Mário Rui de Oliveira e escultura de Giacometti


Numa das esculturas de Giacometti, tocadas ainda de fogo,
um homem caminha, em movimento solitário e eterno.
Não sabemos se entra, se sai da morte, mas conseguimos reconhecer,
na nobreza do cobre, a própria condição humana.
Como benção ou danação, o escultor devolve-nos a vida em estado puro.
Viver é também isso. Percorrer um campo de anémonas,
quase com vergonha do que trazemos escondido, na mão.

segunda-feira, 8 de março de 2010

aconteceu ... a propósito de uma notícia - 4

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Há pessoas que passam por nós e nunca mais nos lembramos delas. Pelo contrário, outras que conhecemos por breve horas deixam uma marca na memória.
Li hoje que morreu num desastre de avionete o Costa Martins, capitão de Abril que tomou conta do aeroporto da Portela no dia 25 de Abril de 1974.
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A ocupação do aeroporto é uma história engraçada, uma vez que era suposto ele ter apoio de tropas que fariam o cerco mas que falharam na hora. No entanto, ele fingiu que estavam e cumpriu a missão que lhe tinha sido destinada.
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Conheci-o um dia em casa de amigos. Senti-me junto de um Arsène Lupin ou de um 007, personagens que a existirem, admiramos e receamos simultâneamente.
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Das muitas histórias que contou nessa tarde, relembro duas:
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1ª - Militar da força aérea, explicou que quando tinha de embarcar num avião nos treinos habituais, perguntava sempre qual o avião que lhe tinham preparado. Posto o que nunca ia no que lhe tinham destinado.
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2ª - Acusado de factos graves e consciente que eram mentira, pôs o estado em tribunal e pôs-se a estudar direito. Explicou-nos que quando tinha de estudar qualquer coisa era sempre o melhor e ficava a saber tanto ou mais que os outros. Daí que não quisesse um advogado, sentindo-me melhor defendido por ele próprio.
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Personagem inteligente, desconfiado, corajoso que terá vivido por vezes no limite/risco, a morte pregou-lhe uma partida na aeronave de um amigo.

sábado, 6 de março de 2010

Poema - Ruy Belo e escultura de Anish Kapoor


Passeou pelos espelhos dos dias

Suas clandestinas alegrias

que mal se reflectiram desertaram

sexta-feira, 5 de março de 2010

aconteceu... a propósito de uma notícia - 3

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Um jovem de 12 anos sai da escola desesperado, atira-se ao rio e desaparece nas águas. Os colegas e o irmão assistem à cena impotentes e não o conseguem impedir.

Descrevem-no como um rapaz frágil, sujeito a bullying, ou seja maus tratos físicos, psíquicos, insultos, ameaças, por parte de outros colegas. Estes, por norma são um pouco mais velhos, mas sobretudo mais agressivos e que se aproveitam de alguma fraqueza física e psiquica do outro para exercer pressão, poder e retirar benefícios. Roubam, fazem exigências, criam situações de medo. Ameaçam tentando impedir que o sujeito faça queixa, criando no outro cada vez mais o sentimento do isolamento, da solidão, da inevitabilidade de sofrer. Na escola, nas ruas ou onde o encontrarem.

Há pois um construto agredido/agressor que ultrapassa os muros de uma escola. A situação pode acontecer em qualquer circunstância. O mais fraco cada vez se sente mais fraco e os agressores cada vez mais fortes e impunes.

Por isso é chocante ver o silêncio ou a negação da existência de bullying na escola por parte do conselho directivo e da associação de pais. Certamente resulta do sentimento de que algo correu mal que talvez podesse ter sido evitado, sentimento certamente doloroso.

O bullying é um problema real. Não é de agora, sempre o houve. No entanto a expressão comportamental está muito mais visível actualmente. Os limites impostos pelo exterior, pelas regras, censura e castigos estão menos consistentes nesta nova sociedade global.

Só com uma actuação conjunta dos vários intervenientes sociais/comunitários poderemos proteger os mais fracos.

Pais, escola, centros comunitários e desportivos, psicólogos, serviços de saúde mental da infância e adolescência, comissões de protecção de menores, todos juntos e em articulação podem ser necessários para actuar nos intervenientes de bullying.

Mas a prevenção destas situações deverá começar muito cedo na vida...

quarta-feira, 3 de março de 2010

Poema - Manuel António Pina

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Só mais um dia,
um dia luminoso e barulhento
por mim a dentro,
um dia bastaria,
em prosa que fosse..

Mas dá-me para a melancolia,
para a limpeza, para a harmonia,
impacientam-me as migalhas
de pão na mesa, as falhas
da pintura do tecto,
as vozes das visitas, despropositadas,
sinto-me sujo como um objecto,
desapegado, desarrumado..

Trocaria bem esse dia
por um pouco de arrumação
- no quarto e no coração.

terça-feira, 2 de março de 2010

Aconteceu...com e na saúde

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Nestas coisas da saúde, tenho tido a sorte em estar pouco na posição do doente. E frequentemente me lembro que a minha Mãe defendia, meio a brincar meio a sério, que todos os profissionais de saúde deviam periodicamente, necessitar de ir a um serviço de saúde, onde recorreriam de forma incógnita, uma espécie de roll play a sério.
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Hoje eu fui a um serviço na qualidade de utente/doente.
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Uma moradia pequena, porta escancarada, vento e frio a entrar e a varrer tudo lá dentro, que a porta comunica com a recepção e sala de espera. Lá perto do tecto, passava o noticiário da manhã num plasma . Cadeiras encostadas à parede com pessoas à espera da sua vez, uma senhora obesa chorava, agarrada à filha, vários maridos acompanhados das mulheres que insistiam que queriam entrar, o que não lhes foi permitido, uma de cadeira de rodas, eu de canadianas...
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À chegada tive de ir dar o meu nome a um senhor da segurança que confirmou que era aguardada, me deu a senha nº 7 e me pediu o contacto telefónico. Comecei por 21 mas depois achei que o telemóvel poderia ser mais útil pelo que emendei, 96. Resposta pronta: vocês têm todas medo que vos telefonem para casa a ver se estão lá, mas isto não é para isso, é para vos avisar se um dia desmarcarem a Junta.
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Chega uma senhora perdida no imenso e bonito Parque Saúde de Lisboa e pede ao funcionário uma informação. Com um mapa na mão vai dizendo que não tem nada de dar informações, que aquele serviço paga renda e que o Parque devia ter os seus funcionários em número suficiente e não ter de ser ele. Mas lá a informa, não sem dizer que informe ou não informe, leva sempre nas orelhas.
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E talvez porque eu estava ali mesmo à mão continua a conversa comigo. Que com a falta de guardas, um dia destes havia ali uma violação e depois ai Jesus. Violação? mostro-me admirada, explica-me que quem ali trabalha é que sabe, uma parte dos doentes do hospital psiquiátrico passeiam-se por ali. Uso o argumento do pai de uma amiga minha, que o grosso da coluna anda lá fora. E raptos, continua ele, nem imagina, é facílimo raptar aqui alguém, veja lá o que aconteceu no Hospital de Sta Maria e também no de Famalicão, só depois de um rapto puseram pulseiras electrónicas aos bebés. E roubos, que não faço ideia do que ali se passa, então ao fim da tarde e noite...
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Felizmente chamaram-me e nem tive tempo para dizer ao funcionário, que quando não estou na posição de utente, também eu trabalho ali naquele parque, noutra casinha como aquela, mas que, de porta fechada e aberta ao som da campaínha, é quentinha e acolhedora, que nunca tive medo de estar por ali, os funcionários são simpáticos e calmos, não assustam os utentes com as suas próprias fantasias, mas lá me despachei e assim como entrei saí.
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E qualquer dia lá terei de voltar!
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