terça-feira, 23 de março de 2010

Aconteceu... que eu tive um Titi

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..."Uma vez, enquanto o velho Selim observava o céu em busca de inspiração, reparei, para minha grande surpresa, que perdera os dentes, com excepção de um único, espetado, como um turbante, na gengiva inferior. Explicou-me com muita propriedade, que aquele dente garantia o equilíbrio das suas composições caligráficas, pois era nele que apoiava a língua enquanto trabalhava."...
in " A Noite dos Calígrafos" de Yasmine Ghata
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O Titi tinha sempre a língua ao canto da boca quando tocava piano, o que fazia muitas das vezes que eu o via. Entrava em casa da Mãe, minha Avó, e pouco tempo depois já estava ao piano, conosco à sua roda, atentos e espectantes, muitas vezes com movimentos ritmados das cabeça ou das mãos acompanhando as melodias que dos seus dedos compridos iam saíndo enquanto afagava as teclas.
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Muitas vezes chegava e tirava do bolso um caderninho de capa laranja onde tinha escrito umas notas. Acontecia que quando ia no carro e ouvia uma música que gostava, encostava ao passeio e com o seu ouvido puro tirava umas notas que, em casa, lhe iriam permitir reconstruir a melodia.
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Outras vezes, no fim dos almoços de família, fazia escalas com os copos, acrescentando ou retirando líquido de modo a obter o tom desejado. Eu tentava sempre ajudá-lo, diziam que eu tinha bom ouvido, mas nada como o dele, inegualável. Depois com uma faca fazia música escolhendo qual o copo onde bater. Às vezes lá se partia um copo mas a Avó não se zangava, a festa era mais que compensadora.
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O Titi em criança dizia que queria ser Faz-tudo. Tinha uma enorme admiração pelo circo e pelos palhaços. Retirei benefício deste seu gosto e herdei-o, porque enquanto solteiro, levava-me sempre com ele. No intervalo do espectáculo parece-me que me lembro que me levava a cumprimentar o Luciano, um dos faz-tudo do Coliseu, na altura.
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Ao ler do velho Selim, lembrei-me das inúmeras vezes que lhe tentei tocar na língua com o meu dedo, enquanto ele tocava piano. Tentava afastar a cabeça, recolhia por breves instantes a língua e o resultado era que se enganava sempre. Mas nunca se irritava comigo.
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Todas as crianças deviam ter um Titi, assim como um Lugar ou uma aldeia. Faz parte das necessidades do crescimento que deixa recordações saborosas e doces.

3 comentários:

  1. O piano das casas familiares é o toque prestigiado da nossa contemporaneidade, uma vanguarda paradoxal com os poucos ou nenhuns dentes dos séc.XIX e princípios de XX.
    Também já tive um piano que irritava tudo e todos, pela desafinação (e a mim sobretudo pelas teclas de marfim dos pobres dentes arrancados aos elefantes). No fundo, fundo os dentes são um bem precioso. Apoiam qq coisa sp.
    Quanto aos pianos, há-os tb sem dentes, ou se tiverem apenas um, enlouquecem e fazem enlouquecer sem apelo ao apoio caligráfico ou a qq outro. A tua Avó é tão parecida com uma lareira redonda.

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  2. Fica para uma próxima dizer que todas as crianças também deviam ter uma avó como eu tive. A sério, de cabelo branco apanhado em banana e com ondas à frente na parte tufada do penteado.
    O piano, as teclas, as mãos que se deviam lavar antes de lhe mexer. Os martelinhos, música autorizada para quem não sabia tocar, ou grandes obras quase dodecofónicas irrepetíveis para quem não sabia, ali também autorizado.
    Também se podia dizer que um piano fica sempre bem numa sala e que o pior que nos pode acontecer é ele estar na sala do vizinho que anda a aprender e todos os dias termos de ouvir as escalas e os enganos repetidos.

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  3. ...seria então bom que aos que pouco tempo tiveram uma avó outros que tem uma assim com cabelos, neves e ondas do mar pudessem emprestar aos outros um bocadinho de avó. Em pouco tempo, após ter perdido a minha avó materna, guardei uma saborosa lembrança de andar com a outra (paterna), Chiado fora de forma ansiosa à procura do túmulo da Raínha D.
    Amélia. Só há pouco tempo soube desta justificação verdadeira, porque a sua transgressão cerebral dava os 1ºs sinais descompensatórios e depois emergiu um mundo onde confundia a minha infância com o seu infinito afogado, irreparável em gritos débeis que já não pertenciam ao xadrez,de seu filho meu pai. E este foi um dos jogos mais prolongados que se estenderam como longos tapetes por uma areia sem fim, ao qual assisti sem fuga e sem glória, esvaziando dos meus bolsos dos bibes brancos todos os meus possíveis territórios de energias frágeis, contemplando com a possível segurança de quem observa com a possível ternura.

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