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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Aconteceu...no século passado, ir buscar água na cantarinha

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Era uma das poucas casas lá da aldeia com água em casa, não da companhia, que ainda não estava instalada, mas com um poço.
No pátio, espaço para onde a casa em L dava, lá estava ele, que não era bem poço, mas uma cisterna grande e larga para baixo, que nunca soube se tinha sido escavada na rocha ou se era mais uma gigantesca pia como as que há por aquelas bandas.
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Cisterna porque recolhia a água das chuvas através de uma canalização montada nos telhados. No início das chuvas essas canalizações eram desviadas e as primeiras águas limpavam os canos. Só as seguintes já eram recolhidas.
Sei que era na Praça da Figueira ou ali perto que se compravam uns peixinhos que faziam da cisterna o seu mar e das impurezas da água o seu alimento.
Tinha uma tampa de folha (ferro?), e um balde com corrente que se mergulhava e puxava. Estava lá um engenho, desactivado, dos que se dava à manivela e a água escorria.
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Logo de manhã cedo, as empregadas, que na altura se chamavam criadas, iam encher as várias bilhas, que ficavam na cozinha e na casa de banho, onde quer por cima do lavatório e da banheira redonda de folha, um depósito de água era cheio. E havia uma torneirinha que abrindo, deixava escorrer a água como se canalizada fosse.
E porque a cisterna era grande e a casa só temporariamente era usada, a água era distribuida a quem a não tinha e ali a queria ir buscar durante a nossa ausência.
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Apesar deste "luxo" na casa da minha avó, o que eu gostava mesmo era de ir, descalça, com uma rodilha na cabeça onde apoiava um cantarinho, com as outras miúdas buscar água lá longe.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Aconteceu...excesso de zelo?

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Chamava-se Benfica, e era vagabundo. Andava de terra em terra, com uma sacola de pano na ponta de um pau que trazia ao ombro. Lá dentro todos os seus pertençes. Esmolava sempre bêbado. Pedia comida e sítio para dormir. No cabelo mal amanhado e cinzento, havia restos de palha e de erva que eram marcas da cama da véspera. Enquanto se aguentava em pé era divertido, fazia macacadas que punham as crianças a rir. Em bando corriam atrás dele, imitavam-lhe os gestos. E ele gritava de vez em quando Benfica! E todos se riam.
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Passava pela aldeia da minha Avó e o Quintal de São João que era propriedade dela, era um dos seus poisos. Tinha uma ruína do que em tempos teria sido uma casa e o Benfica achava o espaço muito aprazível.
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Na época, há uns 50 anos, na casa da minha família dava-se comida no prato a quem pedia. Um prato de sopa, algum conduto como se dizia, pão e até vinho e fruta. A loiça usada pelos pobres era depois desinfectada pelas "criadas" com água a ferver. Era assim na aldeia mas também em Lisboa, onde os cegos ainda cantavam na rua e o acompanhante, habitualmente um coxo, apanhava as moedas que lá de cima, do 3º, 4º ou 5º andar se mandavam embrulhadas num papelinho.
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O Benfica aparecia, ficava um ou dois dias e seguia viagem. Sempre bêbado e aparentemente bem disposto. Ou a cair para o lado e a adormecer. Depois ficava-se sem saber dele. Nunca soube se ele tinha uma rota fixa, ou era ao sabor das curvas etílicas que seguia. Sei que voltava sempre e atrevo-me a dizer, era esperado. Ninguém o enxotava, fazia parte da vida da aldeia, onde a passagem de um carro ainda era notícia.
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Teria eu 4 anos quando a minha Mãe tirou a carta e comprou um carocha, DD-38-19, cinzento prateado. Quando falávamos dele dizíamos o Voxinho, como se de uma pessoa se tratasse. Até tinha apelido também, por acaso os meus. Era um personagem importante na nossa família. Estando eu de férias com a minha Avó lá na aldeia, a minha Mãe apareceu de surpresa e sozinha a guiar o carro. Sozinha lá dentro porque atrás do carro eram bandos de miúdos a gritarem "é uma chófera, é uma chófera", correndo pelas ruas de pedra até à nossa porta.
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Um dia o Benfica foi apanhado nas malhas de um médico que resolveu reabilitá-lo, fazê-lo deixar o álcool. Enviado para Lisboa, foi internado no serviço que tratava dos alcoólicos. Tiraram-lhe o vício. Deixou de beber.
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Depois disso passou pela aldeia uma só vez. Numa árvore pendurou uma corda enforcou-se. Tinham-lhe tirado a única coisa que tinha e não lhe tinham dado nada em troca. No dia em que se soube da notícia, ficamos todos mais tristes.