sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O copo

 

269º dia do recomeço do blog

Não sei há quantas décadas estarias ali fechado, numa escuridão total onde nenhum ponto de luz conseguia entrar. Frio quando te toquei, estavas sujo por fora e muito por dentro. O teu fundo era preto, em camadas. Tinhas companhia, naquela prisão estava outro aparentemente igual. Seria? Do lado de fora tens gravada uma data, numa letra pequena e tombada. 21-4-935. Data que a mim nada me diz. E o outro, teria a mesma gravação? Não olhei, imagino que não, qual de vós seria o mais velho? Fiz mal em trazer-te? Não, tu não sentes nada. Eu sim, eu vou-te sentir nos meus lábios, algumas vezes por dia. Mas antes ficarás todo limpo, brilhante mas continuarás duro e frio como és. Mas como o metal é bom condutor quando estiveres cheio de água quente também tu terás outro calor que eu sentirei. 21-4-935, que terá acontecido nessa data? Nunca irei saber. Talvez amanhã ou depois, recuperado devesse gravar a data de agora, em que vais voltar a ter uso. Vou tratar de ti que no fundo é também tratar de mim, durante umas boas horas.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Com poema de Herberto Helder

 

268º dia do recomeço do blog

Estamos a ficar doentes. Os horizontes curtos que a pandemia permite estão a bloquear a nossa criatividade e a limitar o pensamento. Quando há dois dias escrevi sobre o estar "covitada", estou mesmo. Tudo o que é de novo, parece que não aprendo, não me lembro, esqueço, confundo. Quase me admiro como é possível que há pouco mais de ano e meio eu trabalhava, tentava resolver os problemas dos outros, pensando, escrevendo sobre eles, apresentando em público, sabendo discutir. Mexer nos materiais com que brinco, criar objectos de adorno, desenhar. Tudo parou. Ficou e de forma quase obsessiva a leitura da prosa, que por contínua faz com que me admire por serem 18h ou outras mais tardias. Elas passaram sem dar por isso. A leitura que faço enrola-me, adormece-me e quando acordo tenho consciência que não dormi, mais como se tivesse estado num estado de alheamento.  Acordo por vezes para uma actividade esporádica. Gostava de dizer que amanhã será diferente, um dia novo, mas será?

"Eles estão a morrer de todas as maneiras 

mas diga-me: não há apenas uma só maneira:

a maneira cega?"

Herberto Helder


quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

São bestas, senhores, são bestas!

 

267º dia do recomeço do blog

Um cidadão ucraniano veio de avião para Portugal. No aeroporto é morto à pancada por inspectores do SEF. Maltratado e deixado a morrer num sofrimento de horas. 

Já tinham morrido dois aspirantes a militares em treinos de recruta. Maltratados pelos formadores militares, desumanamente,  desidratados, tardiamente levados para o hospital. Vem-se agora a saber que em cursos anteriores aconteceram episódios semelhantes, sem mortes mas com jovens homens a ficarem dependentes de hemodiálise. 

Foram vários os inspectores do SEF que assistiram, souberam e nada fizeram. 

Foram vários os instrutores militares que assistiram, participaram ou silenciaram.

São bestas, senhores, são bestas! 

Oxalá seja feita justiça. Os pides salvaram-se, somos um país de brandos costumes. 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Uma cabeça covitada-19

 

267º dia do recomeço do blog

Ontem passou na televisão o filme "O Labirinto da Saudade", sobre a obra e pessoa de Eduardo Lourenço falecido esta semana, conforme aqui disse a 2 de Dezembro.

Nunca tinha visto o filme que achei muito interessante. Várias pessoas da cultura portuguesa com excepção do Gregório Dudivir (brasileiro) falam com ele e perguntam-lhe alguma coisa sobre a qual ele discorre o seu pensamento. Ele vai andando pelas salas de um edifício lindo, como se andasse pelo seu pensamento multifacetado ou as salas da vida, onde em cada uma está uma dessas pessoas. É bonito o filme, na imagem e música e pelo discurso dele.

Um dos que lhe perguntam a opinião é Siza Vieira, sempre de cigarro na boca, sobre a morte, o que será. E deu a sua própria opinião, ele que fazia obras de arquitectura, tem filhos, a vida terá uma continuidade que fica. Ao que ele retorquiu que Hiroxima em poucos minutos foi destruída, já ninguém sabe quem tinha construído mas todos sabem quem a destruiu. De facto neste exemplo é verdade mas não será uma resposta um pouco agressiva, ou destrutiva? Ou para nos pôr a pensar? Não é por acaso que a fixei.

É um filme de 2018. E hoje quis de revê-lo. Porque...imaginem que ouvi falar na Covid, o que me pareceu impossível porque ainda não existia nessa altura. Daí que hoje fui revê-lo. Claro que ninguém falou, a minha cabeça é que está covitada!

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Filas, filas e mais filas.

 

266º dia do recomeço do blog

O Presidente Macron aligeirou as medidas em França. Confirmado nos vídeos e fotografias, imensa gente na rua e nas lojas. Aumentou o número de infectados, de internados e de mortos. 

Hoje fui ao Colombo, Centro Comercial em Lisboa, que fica logo ali na esquina. Quando me aproximei vi uma enorme fila para entrar. Mesmo assim e  com as regras adequadas lá me pus. Na minha frente uma pessoa queria entrar à frente porque tinha o carro na garagem e estava a pagar. Furiosa desistiu. Eu esperei pouco. Mas não consegui fazer nada do que me levava lá. Matava-se gente. Tudo tinha enormes filas, para as livrarias, supermercado e cápsulas de café. Não fiquei em nenhuma, voltei as costas e saí.

Está toda a gente a querer fazer como fazia, prendas, prendinhas, jantares e almoços comme il faut nos dias festivos.

Mas será que esta "liberdade" não vai agravar a situação da pandemia?

Suponho que a partir das 13h ou 15h, já ando baralhada, já estariam todos em direcção às suas casas. Eu fui logo para a minha, onde não há filas.

domingo, 6 de dezembro de 2020

Vizinhos que deixam um vazio por aqui

 

265º dia do recomeço do blog


Não os conhecia profundamente mas gostava deles. Quando vieram morar para o apartamento mesmo à minha frente resolvi apresentar-me como Magda, a vossa vizinha aqui da frente, sejam bem vindos. E responderam com uma enorme simpatia. Ele brasileiro, ela argentina, e uma criança pequena que mal sabia andar e aprendeu o meu nome.

Muito educados e discretos, havia semanas que não nos cruzávamos mas às vezes ouvia-os sair e chegar, tal como eles a mim.

Usavam a bicicleta como meio de transporte e só às vezes alugavam um carro. Muito cuidadosos com a alimentação, seriam vegans ou vegetarianos, não perguntei mas quando um dia quis dar uma bolacha à filha o pai ficou aflito até eu lhe mostrar que era produto biológico.

Um dia dei à miúda uns livros de histórias dos meus filhos. Eram do Babar, pai de uma família de elefantes, tal como os humanos. Livros que deixei de ver à venda. A mãe disse-me que ela tinha gostado muito. E eram giros, de facto.



Um destes dias percebi pelas caixas e malas que iam embora. E foi quando percebi que, quase sem contacto, era aconchegante tê-los aqui.

Mudaram para uma pequena aldeia onde compraram uma casinha com jardim. Escola e praia perto. Lisboa fica a menos de uma centena de quilómetros e tem autoestrada. E com o teletrabalho estas situações ficam mais fáceis.

Ontem e hoje já não ouvi as correrias da criança, a sua vozinha agora com três anos.

Gosto que tenham ido procurar um sítio onde se sintam melhor. Mas eu fiquei triste.  

sábado, 5 de dezembro de 2020

Desigualdades.

 

264º dia do recomeço do blog


Há uns 50 anos ou mais não havia serviços de psiquiatria distribuídos por Portugal. Eram os médicos do Instituto de Assistência Psiquiátrica que iam fazer consultas a várias capitais de distrito. 

Tanto quanto sei as brigadas eram fixas, na constituição e nas cidades.

Um dia um dos médicos ficou doente e a minha Mãe foi substituí-lo e vários doentes nomearam-lhe o "seu marido na última consulta".

Nunca tinham visto uma mulher médica nem lhes passava isso pela cabeça.

A desvalorização da mulher face ao homem continua meio século depois. 

Não consigo contar este episódio sem sorrir, apesar do que manifesta é de uma enorme confiança no outro.

Hoje uma amiga minha contou a este propósito e furiosa, que um programa de rádio terá entrevistado a mãe dela e um homem, estrangeiros residentes em Portugal, como pessoas que se destacaram. A mãe dela é  diplomata. Apareceu como casada com um português há 40 anos, mãe e avó. Quanto ao homem, foi apresentado com os graus académicos. Iguais aos dela mas não referidos.

É assim e estamos na Europa.