segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

domingo, 10 de janeiro de 2010

aconteceu estar a ler - 2

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(...) "Certa vez o tal Bobby tinha saído num barco e naufragara. Como pôde, agarrou-se a um tronco que andava por ali a flutuar, um tronco milagroso, e esperou que o dia chegasse. Mas de noite a água cada vez era mais fria e Bobby começou a gelar e a perder forças. Cada vez se sentia mais fraco e embora tivesse tentado atar-se com o cinto ao tronco, por mais esforços que fizesse não conseguiu. Contado parece fácil, mas na vida real é difícil atar o nosso corpo a um tronco à deriva. Então, resignou-se, pensou nos seus seres queridos (aqui referiram um tal Jig, que podia ser o nome de um amigo, de um cão ou de uma rã amestrada) e agarrou-se com todas as suas forças ao tronco. Então viu uma luz no céu. Julgou, ingenuamente, que se tratava de um helicóptero que tinha saído para o procurar e pôs-se a gritar. No entanto, não tardou em reparar que os helicópteros fazem um som de hélice e a luz que via não fazia esse som. Passados uns segundos apercebeu-se de que era um avião. Um enorme avião de passageiros que ia cair directamente no sítio onde ele estava a flutuar agarrado ao tronco. De repente, desapareceu-lhe o cansaço todo. Viu passar o avião mesmo por cima da sua cabeça. Ia em chamas. A uns trezentos metros donde ele estava o avião espetou-se no lago. Ouviu duas ou talvez mais explosões. Sentiu o impulso de se aproximar do sítio onde tinha acontecido o desastre e assim fez, muito lentamente, porque era difícil manejar o tronco como se fosse um flutuador. O avião tinha-se partido em dois e só uma parte é que ainda flutuava. Antes de chegar, Bobby viu como se afundava lentamente nas águas novamente escuras do lago. Pouco depois chegaram os helicópteros de salvamento. Só encontraram Bobby e sentiram-se defraudados quando este lhes disse que não viajava no avião, mas que tinha naufragado no seu bote, enquanto pescava. De qualquer modo, ficou famoso durante um tempo, disse aquele que contava a história." (...)

in 2666, de Roberto Bolano, p 281, 2009 Quetzal Editores, Edição Especial
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É esta forma minuciosa, pormenorizada mas de leitura fácil, com pontas frequentes de humor, que nos agarra à leitura. O peso real do livro é que a dificulta.
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O bold é meu. Acho uma delícia a expressão do sentimento dos pilotos salvadores.
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Associei com os nossos noticiários, o escandalo vende sempre mais, salvar alguém de um naufrágio de bote é menor que de uma queda de avião. Mesmo assim, o naufrago "ficou famoso".

sábado, 9 de janeiro de 2010

Poema - Maria do Rosário Pedreira

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O gato lembra-se de ti nos intervalos. Espera
de olhos acesos as histórias que nos contas.
Passeia-se inquieto sobre o meu parapeito e eriça
o pêlo, cumplice, quando pressente que regressas.

Chegas sempre de noite. Sei quem és e ao que vens
e ofereço-te o silêncio de um pequeno quarto recuado,
as sombras das traseiras na minha pele, o tempo
de repetir um gesto inevitável. Ouço-te contar
a mesma lenda com lábios sempre novos. Aprendo-a
e esqueço-a. Nunca a saberemos de cor, o gato ou eu.

Depois partes. Levas contigo a tua voz, mas a música
fica. Eu fecho as portadas devagar. O gato mia baixo
à janela. Ninguém acena: guardamos com os outros
o segredo das tuas visitas. Ambos. O gato e eu.
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Maria do Rosário Pedreira

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

aconteceu... a propósito de uma notícia - 3

. Fotografia - Magda


Um passeio pelo Parque Natural do Douro Internacional é para se fazer lentamente.
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Hoje relembro Miranda do Douro e o passeio de barco pelo rio. Muitos espanhóis, alguns outros europeus, poucos portugueses.
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O guia pede que durante o passeio não se faça barulho. É um passeio virado para ver e ouvir.
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O barco vai andando pelas águas do rio que corre num vale escavado, de águas profundas e rodeado pelas arribas.
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A palavras do guia vão chamando a atenção para algumas coisas. Depois cala-se.
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Um silêncio espantoso, tranquilizante.
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Chama-nos a atenção para ninhos de cegonhas pretas. Ficamos a saber que as cegonhas voltam todos os anos ao seu ninho, mas se ele tiver sido mexido, abandonam-nos e vão fazer noutro sítio uma nova casa para nidar. Frequentemente os intrusos são caçadores selvagens.
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Lá no alto vê-se um grifo, mais além algumas águias de espécies diferentes. Estão a voltar depois de um período de em que tinham desaparecido.
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Procuramos lontras nas águas. Vemos duas cabecinhas. Têm rareado nos últimos tempos, também são cobiçadas pelos homens.
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A proteção do Parque tem evitado muita dizimação.
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Leio há dias uma notícia do Público, informando que desde outubro não há vigilantes no Parque do Douro Internacional. Mas então, como é, classifica-se mas não se dá continuidade à proteção?

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

aconteceu hoje -1

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Pai, hoje postei um poema teu datado de 1953
Tinha eu 1 ano.
Sempre te preocupaste com o sofrimento dos outros
As dificuldades de quem nasce em berços parcos.

Entrei hoje na idade que tinhas quando morreste,
Eras de facto muito novo para morrer
Na altura não tive completamente esta noção.

Não sabes, já cá não estavas,
Mas a Mãe também foi embora neste dia
No dia dos meus anos
Mais uma coisa que nos uniu,
Como se isso fosse preciso...
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Convosco dentro de mim
Sinto uma sombra de tristeza, mas
É com prazer que olho para os meus filhos
Para os meus netos
E vejo que a vida continua.
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Magda

Poema - Henrique A. Jorge

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NO CIRCO
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Entram os palhaços no redondel
riem os adultos e riem as crianças,
e dos sapatos grandes do faz-tudo
saem coelhos e pombas brancas.
Faz-se um silêncio longo
com o homem do trapézio a baloiçar nas alturas.
Mas na ponte de ferro que atravessa o rio
da escarpada encosta
ninguém liga ao pintor de fato de macaco,
e na casa que sobe quase às núvens
no trolha que caminha em traves.
Mas no jornal e todos os dias
leio em silêncio o que ninguém repara:
horas sombrias...
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Henrique A. Jorge (1920-1978)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

aconteceu...a propósito de uma notícia - 3


Imagem retirada da Net

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Esta imagem de uma santa com cara de gata estava à porta do Gat Hotel, ali para os lados do Rossio.

Tive conhecimento disso através dum programa de televisão em que foram entrevistadas pessoas que passavam na rua do hotel.
Pretendia-se saber qual a reacção a esta "virgem".
Houve várias que se sentiram ultrajadas, indignadas nas suas crenças, outras acharam engraçado, interessante.
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Tinha combinado com umas colegas minhas dos Anciens, todas amigas ou donas de gatos, uma peregrinação ao Hotel, seguida de um chá.

Faltava combinar o local de partida e para ser a sério quem sabe se seria a pé, pelo menos desde o metro ou do parque de estacionamento do carro...
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Num passeio de reconhecimento depara-se com o nicho vazio.
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Informação recolhida na recepção: atendendo aos protestos, a direcção resolveu tirar a escultura.
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Que tristeza! Que mediocridade! Um bom exemplo de como somos tão pouco livres, tão conservadores por baixo de uma capa de modernice!