quinta-feira, 15 de julho de 2010

Aconteceu...que os ténicos eram bons mas o jardim era um matagal

.
Há uns anos trabalhei num serviço que na altura era modelo. Edifício novo, equipa entusiasmada e cheia de iniciativas, íamos para o trabalho como quem ia para o seu clube.
Penso mesmo que fazer do serviço "o seu clube" é uma das artes de transformar o trabalho em prazer.
.
Mas tínhamos alguns "senãos", claro.
Um deles era o jardim que envolvia o edifício, mais conhecido pelo "matagal", onde cresciam ervas ao desbarato, que no verão se tornavam um óptimo palco para possíveis incêndios e morada de muitos animais rastejantes e roedores.
.
Um dia na consulta, uma criança grita olhando para a parede que ficava à minha frente e atrás da avó que a acompanhava. Apontou e gritou "Olha um lagarto". A avó, que se tinha ido queixar do comportamento da neta, aproveitou o grito que nos interrompeu para dizer " Vê, sra. Dra., mentiras são todos os dias e não respeita ninguém." Mas o bicho estava lá, gordo e comprido, mesmo à minha vista.
.
Noutra altura, na caixa das reclamações, apareceu um envelope escrito e com brinde. Com letra muito pouco elaborada, alguém tinha escrito que os médicos e os técnicos todos eram bons e eram bem atendidos, mas a criança tinha muito medo de lá ir por causa dos bichos, e a provar acompanhava a missiva um rato morto e ressequido.
.
Com a presença de utentes nas reuniões dos conselhos de administração dos hospitais, proposta recente, será que estes aspectos quase ignorados passam a ser valorizados?

Poema - Nuno Júdice

.
A POESIA
.
É uma luz que desce a escada do poema e
se senta à porta, esperando que o dia entre
para dentro da estrofe.
.
É uma voz que se encosta ao corrimão
da palavra, e sobe sílaba a sílaba até chegar
ao patamar do verso.
.
É o eco que nasce de um canto perdido
nos quintais do poema, e atrai os pássaros
para dentro desta imagem.
.
É a mão que percorre as linhas da frase,
como se fossem as linhas da vida, e decide
em cada cesura um ponto final.
.
Como se a poesia nascesse do silêncio, ou
um grito a empurrasse para a vibração
de um último eco.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Aconteceu...o tempo da nossa vida é subjectivo

.
Há bastantes anos, precisamente em 1981, iniciei a minha especialidade no Hospital Miguel Bombarda.
Para quem não sabe, tratava-se de um hospital psiquiátrico, onde apesar de ter no seu quadro alguns médicos activos e influenciados por correntes dinâmicas da nova psiquiatria, ainda era muito fechado ao exterior.
Tinha internados doentes agudos mas também outros que ali viviam em permanência, há largos anos, e cujas famílias já quase os tinham esquecido. Estes doentes, estavam medicados e sem outra vida que passear pelo pequeno espaço livre do hospital, um clube com bar e umas actividades de ocupação terapêutica.
Na enfermaria, para além do contacto com os médicos e enfermeiros, tinham umas reuniões onde se pretendia activar as partes mais sãs dos doentes, permitir-lhes dialogar, expôr desejos de mudança etc.
Participei na primeira reunião de serviço com médicos, enfermeiros e doentes, que tendo existido semanalmente até 1974, tinha sido interrompida e só recomeçada exactamente na altura que para lá entrei.
Os médicos e enfermeiros eram, na quase totalidade os mesmos que tinham participado na reunião 7 anos antes. Parte dos doentes também lá tinham estado, visto serem doentes crónicos com anos de internamento e para os quais o hospital era a sua casa.
Depois de ter sido dado início à reunião, um doente dos mais antigos pede a palavra, e dirigindo-se ao médico chefe e disse "Sr. Dr., na reunião da semana passada...". Blá, blá, blá e eu não faço a mais pequena ideia do que é que ele falou. Fiquei presa ao facto de alguém poder resumir 7 anos a 1 semana! Presa, angustiada e triste. É terrível pensar que para ele provavelmente nada se tinha passado durante aqueles anos, que tivesse preenchido o tempo, dando-lhe memória, vivências, espessura.

.
Mais tarde estudei algumas coisas sobre o tempo subjectivo, fenómeno que me interessou. E li um romance excepcional, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, que aconselho a quem quiser compreender como se pode com a nossa actividade mental hibernar (perder) ou ganhar (viver) a vida.
.
Lembrei-me deste episódio hoje, dia em que recomecei a dar um Seminário que esteve interrompido desde a fractura do meu pezinho, já lá vão 9 meses. Não, não nasceu nenhum bebé, mas foi apresentado um texto com 9 meses de atraso.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Poema - João Melo

.
DUAS LIÇÕES
.
I
.
Todos os materiais servem ao poeta:
o som de um tambor,
a angústia de uma mulher nua,
a lembrança de uma utopia.
.
A vida deposita, diariamente,
no altar profano da poesia
a sua dádiva generosa:
estrelas e detritos.
.
E tudo a poesia sacrifica.
.
II
.
Para amar um poema,
é preciso ter coração e
sangue nas veias.
.
E que o poema seja uma carícia
ou um soco na boca do estômago.

sábado, 10 de julho de 2010

Aconteceu...baratas gigantes invadem Lisboa

.
"Baratas gigantes invadem Lisboa".
Não é nenhum título de filme, parece que acontece quando há muito calor, como tem estado. Chamada a barata americana, vive nos esgotos de onde sai à procura do fresco. E vem no jornal de hoje, citando zonas como Telheiras, a Expo e Campo de Ourique.
.
A minha avó Elvira morava num 3º andar de um prédio de construção de gaiola de madeira. Eram andares grandes, com muitas assoalhadas. Como era formato habitual, à porta e virando à direita seguia-se um enorme corredor - grandes viagens de triciclo e de trotinete fiz, naquilo que eu imaginava ser uma grande estrada -, de onde saiam vários quartos, sala de costura, saleta, sala de jantar, cozinha e casa de banho. Se da porta da rua se virasse à esquerda, uma sucessão de salas, comunicavam entre si . A última era o escritório, um dos meus sítios preferidos para, ainda eu não sabia escrever, já "atender" doentes e passar receitas.
.
Mas voltemos às baratas. Os locais mais frescos eram a cozinha e a casa de banho. Lembro-me de uma vez por outra encontrar uma na casa de banho, grande, gorda e preta. Algumas vezes o nosso cruzamento terminava com o esmagar propositado do bicho e o barulho da casca de quitina a partir-se ainda hoje me é familiar. Se me enojava e amedrontava, também me causava um arrepio de excitação, pelo que repetiria o acto heróico quando, noutra altura, nova barata se cruzava comigo.
Era uma convivência normal, existiam elas e nós também.
.
Mais tarde vim a encontrá-las nos navios, subindo pelas paredes. Essas eram castanhas, e muito mais pequenas, mas às dezenas ou mesmo centenas. Enojavam-me.
.
Também Rafael, personagem de Ruben da Fonseca em A Grande Arte tinha nojo delas. Assassino cruel, que no entanto cultiva rosas, é vencido quando conseguem meter-lhe uma barata na boca, tal o nojo que o bicho lhe causou. Nessa altura foi possível ao anão espetar-lhe uma tesoura na barriga e matá-lo.
.
As que agora invadem Lisboa, justificando nalguns casos o recurso a empresas desbaratizadoras, serão talvez descendentes afastados das da Rua Viriato?