quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Poema - Pedro Tamen

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Quando, ao cair da noite,
zumbe lá fora algo que não conheço,
será talvez o roçagar das nuvens
ou o ar agitado por um aceno
que me chama para longe deste banco.
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E de repente choro
tentando não molhar a paz evanescente
que as minhas mãos seguram incompleta
e que um dia, perfeita, falará
ela própria comigo, meu destino.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Aconteceu...há quem respigue para comer...sem IVA por enquanto!

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Oiço sempre que posso, as crónicas do Fernando Alves na TSF. Muitas vezes falar de coisas que desconheço, outras, como hoje, falou de qualquer coisa que estou farta de saber, a fome em Portugal e a inúmeras pessoas que andam à procura de comida nos caixotes do lixo. Sentimo-nos muito incomodados, são situações que nos envergonham.
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Há alguns anos dei um passeio pela Serra de Santo António. Terras pobres, cheias de pedras e de grutas, a população teve de se virar para a indústria das lãs, mantas, camisolas, o que safou muita gente. Pouca agricultura, só algumas vacas e cabras, as salta-catrepa como se diz em "calão" míndrico.
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As pedras fazem muros, umas em cima das outras, para separar propriedades. Ou cobrem extensões de terreno, com formas diversas, modeladas, os lapiás. Algumas fazem autênticas bacias, as pias, umas maiores outras mais pequenas, onde as águas da chuva se guardam e servem para os animais matarem a sede.
Outras, mais estreitas e com alguma profundidade, serviam para guardar o bagaço da azeitona (o que resta depois de espremida a azeitona para a feitura do azeite), e que, misturado com sal para conservar, ia servindo de alimento ao porco.
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Ao ir espreitar um desses buracos, uma velhota toda curvada, aproximou-se com curiosidade. E foi ela que nos explicou o que era a cova do bagaço. E solicita, ofereceu-se para nos ir mostrar umas enormes pias que ficavam num terreno particular mas onde ela podia nos levar.
Custou-nos aceitar porque ela era tão velhinha, que imaginamos o esforço que ia fazer, pelo caminho fora a pé. Insistiu, e lá fomos.
A certa altura, baixa-se ainda mais (dobrada já ela estava) e apanhou do chão qualquer coisa que meteu no bolso. Fiquei curiosa e mostrou-me, era uma fava, um bago de fava. E disse-me que teria caído quando transportaram outras que por ali teriam sido debulhadas, e que era tão boa como as outras. Havia de a comer.
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Da televisão que só oiço, sai a voz dos nossos dirigentes a apresentar as medidas económicas "para compensar o deficit".
Respigaria algum deles uma fava do chão? Não me parece, mas receio que a taxassem!

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Poema - Vítor Nogueira

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GEOLOGIA
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Às vezes são homens de bem
empurrados para esta vida,
resquícios da erosão da montanha,
paisagens antigas
enterradas no gelo.
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Nada está garantido
numa geologia tão frágil. Este chão
pode virar-se sem aviso.
Ainda assim, sejam bem-vindos,
fiquem tristes à vontade.

domingo, 26 de setembro de 2010

Aconteceu...em 1975, numa assembleia convocada pela comissão de moradores

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Daqui a pouco ficarei presa em casa. As ruas serão temporariamente fechadas. Vai passar a procissão!
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O último domingo de Setembro é o último dia da feira, falei nela no princípio do mês quando começou.
Relembro que durante um mês, em plena cidade, a feira atrapalha os moradores. É barulho, sujidade, mais trânsito, falta de lugares para parquear, diminuição da segurança, sei lá, um rol de coisas.
Quem não é morador adora-a, vêm carros cheios com famílias inteiras, saem abraçados a alguidares, edredons, barros, flores, loiças. Enquanto lá se passeiam lambuzam-se com algodão doce, farturas e uns coiratos.
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Hoje a feira não é o que era. Pressões várias e a junta de freguesia, assembleia e Câmara têm tido a sensibilidade de a limitar. Muito menos barraquinhas, o interior do jardim (um mimo!) mantém-se livre delas podendo ser usado pelas crianças e os idosos que habitualmente lá jogam cartas, já não há a parte dos carrinhos de choque, dos microfones aos gritos. Já só tem muita gente aos sábados e domingos.
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Claro que não se pode acabar com ela, digo eu agora, é um acontecimento de cultura popular com séculos de existência. Mas porque não há-de durar só uma semana, esta mesma em que se realiza a procissão?
A feira acabará hoje à noite.
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Memórias de 1975
O pavilhão gimnodesportivo está cheio. É preciso empurrar os da frente para conseguir um lugar, as cadeiras estão já estão todas ocupadas, há gente a pé nas partes laterais. Um sucesso a resposta à convocatória da Comissão de Moradores. Ponto único da ordem de trabalhos, acabar com a feira!
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Atrás da mesa e encostados à parede, soldados do regimento mais próximo com espingardas de cravos na ponta.
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"Vai-se dar início à assembleia, aceitam-se inscrições" diz o presidente da mesa que irá gerir quer o tempo, quer o tema.
Muitos inscritos, uns a favor outros contra, e eis que a Glórinha, nome fictício, pede a palavra. É uma figura conhecida do bairro. Maneta, alcoólica e mais outras coisas que se dizem por aí, começa por dizer-se muito limpa. Limpa? Mas a que propósito virá tal coisa? Mas ela continua comparando a higiène dela com as senhoras da Comissão. O presidente intervém "Minha senhora, relembro-lhe o ponto que estamos a discutir. Por favor não se desvie dele". Mas ela insistia e de repente levanta a saia, onde por baixo não havia cuecas, para mostrar a tal limpeza. Foi uma enorme confusão!
Gritos na sala, mães a tapar os olhos dos filhos, os soldados sem saber que fazer, o Presidente a querer, sem conseguir, manter a calma na sala, uma debandada geral porta fora, aos empurrões. Lá dentro, a comissão, os soldados e umas poucas dúzias de participantes.
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Acalmados tentou-se recomeçar a reunião. Mas a maior parte dos participantes não tornou a entrar. Ficou-se sem quórum suficiente para uma decisão daquela grandeza. Deu-se por terminada a assembleia.

sábado, 25 de setembro de 2010

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Poema - José Tolentino Mendonça

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A ESTRADA BRANCA
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Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto.
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folhas tremiam
ao invisível peso mais forte
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Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate