segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Poema - Fernando Pinto do Amaral

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AGENDA
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Chegas de novo a casa. Reconheces
no fogo mais antigo
dos dias tão mortais as cicatrizes
voláteis do passado
essa caligrafia pouco a pouco
ilegível. No tempo que te cabe
folheias essas páginas percorres
a tua nova agenda
marcas ainda encontros assinalas
os meses as semanas tão vorazes
os dias que te faltam nesse livro finito
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Marcas de novo os dias mas ignoras
as leis dessa contagem regressiva
Hoje sabes apenas que nenhuma
agenda te dirá qual a exacta
data do decisivo derradeiro
encontro. Desconheces
que páginas futuras deixarás
em branco

domingo, 15 de agosto de 2010

Aconteceu...que a maré se atrasa todos os dias

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Foi com um enorme entusiasmo que ele gozou as férias de verão no Algarve.
Ainda não sabe nadar mas desenvolveu muito as suas aptidões na praia e na piscina. Mergulhos, carreirinhas, covas na areia para ver aparecer a água, túneis, colecção de conchas, pedrinhas, e ondas, que o acompanham mesmo em casa com o som e movimentos de mãos. Uma imensidade de actividades qual delas mais interessante e divertida.

Gosta muito mais da maré vazia, em que a praia fica maior e as ondinhas estão mais dimensionadas para ele, pequeno de 5 anos.
E como tem curiosidade de perceber as coisas, tentava inteirar-se dos porquês. Porque o mar cresce e diminui? hoje estará como a maré? a que horas é a preia-mar? sempre a pensar no prazer que depois iria ter quando lá chegasse.
Foram-lhe explicadas algumas coisas, que foi aprendendo sobre a terra e a lua, que todos os dias a maré não é sempre à mesma hora, que se ontem a maré baixa era às tantas horas, hoje iria ser, cerca de 1 hora mais tarde.
E ele lá estava sempre atento.

Ontem a caminho de uma praia diferente, e com viagem de carro maior, perguntou, : Papá, achas que hoje a maré também vai chegar atrasada?

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Aconteceu...gato preto, monstros e sexta-feira 13

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De forma perfeitamente involuntária, ontem pus um poema em que entra um gato preto e hoje outro com monstros.
Já repararam que hoje é sexta-feira 13?

Poema - José Carlos Barros

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OS MONSTROS
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Nos pesadelos
os monstros às vezes temem que os olhemos de frente
que possamos apagar-lhes a sombra
ou acordá-los a meio da tarde
abrindo as portadas dos seus refúgios
deixando a luz avassaladora a cobrir-lhes o corpo
a queimar-lhes as pupilas remanescentes
como se fôssemos nós
os monstros
deles.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Poema - Eugénio de Andrade

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ACERCA DE GATOS
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Contigo chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não lhe tive
afeição que durasse, nem ela merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do Público ao domingo.