segunda-feira, 14 de junho de 2010

Poema - João Negreiros

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O POEMA NÃO

quero as palavras pequenas como feijões
que não me dêem problemas como os feijões
as palavras mescladas com carne que me dão a sabedoria de quem
[não está para pensar
os grandes temas fazem-me comichão e ardem-me demais
já os visitei muitas vezes
tantas que não estão em casa
o amor não está em casa
a vida não está em casa
a condição humana não está em casa
a violência
a beleza
a tristeza
as raças
as distâncias
a injustiça não estão em casa
ninguém está em casa por isso não gloso a erudição mas gozo o
[poema não
o não poema
o que não diz
o que nada
o poema nada
este é o poema nada
é o que existe na vez do branco
o que existe para matar a árvore
a literatura morta
lenta
inválida
sensaborona
flácida
talvez assim entendam
talvez assim o queiram
não perco em tentar
se serve tanta gente porque não há-de servir
vou só antes de terminar escrever umas palavras à sorte
[com um truquezinho estilístico
pelo sim pelo não
e fica o trabalho feito
a pata do pombo trepa o farol
é isto
que bem que corre
soa tão bem e diz tão nada
olha de novo
o lento do corvo imiscuí-se na negrura dos tempos
é soturno bom para quem gostar
soa bem
música de elevador
só mais uma para acabar
o tentáculo do céu acalma o horizonte
espera
não
este é bom
é melhor guardar para um poema poema
um poema mesmo
trocando por miúdos um poema
esquece aquele
substituo por
o autocarro sozinho na penumbra
olha que bem
mesmo à medida do que não diz nada mas que ao mesmo tempo é
[tudo
muito bem
bem bonito
estou mais velho
mais feio
mais estúpido
e tu também
o Peloponeso pinta-me o pénis Laurinda

sábado, 12 de junho de 2010

Aconteceu...almoçar feijão frade com atum e matemática

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Feijão frade de lata com atum enlatado, durante anos nem conseguia pensar em comer isto. Reportava-me para a comida de férias, passeios a pé, picnic e camping, que com gosto mas sobretudo por necessidade, se comia nas passeatas pelo estrangeiro já com 2 filhos e dinheiro contado.
Um dia a passear a pé pelos Picos da Europa? Latas de feijão frade e de atum. Uns dias na Galiza? Latas de feijão frade e atum. E assim por diante.
Na casa dos meus pais comia-se feijão frade, quentinho com cebola e salsa picada como acompanhamento de pasteis de bacalhau. Ou usando uma linguagem mais nortenha, chícaros com bolinhos de bacalhau.
Pois hoje, e depois de falhado outro menu, foi o daquelas férias que comi. E soube-me muito bem, coisa que ainda há poucos anos me daria enjoo só de pensar.
A memória não é uma coisa estática, como sabemos, e o facto de estar ligada a emoções, dá-lhe uma grande mobilidade. O tempo pode até alterar as nossas memórias afectivas, ao dar-lhes outras tonalidades, permitindo outras leituras.
Mas, enquanto comia li no Expresso a crónica sempre tão interessante do matemático Nuno Crato. Escreveu ele sobre o tipo de movimento organizado que os peixes predadores como o atum têm quando procuram alimento. Movimento este que é diferente conforme há muita caça - movimento browniano - ou pouca -modelo de Lévy. Ou seja, movimentos organizados e estudados pela matemática e que ele, como é costume, traduz em linguagem aparentemente simples.
O atum que comi fez ligar duas partes essenciais de mim, a parte afectiva e a parte racional. Foi uma refeição completa!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Poema - Eugénio de Andrade

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AOS JACARANDÁS DE LISBOA

São eles que anunciam o verão.
Não sei doutra glória, doutro
paraíso: à sua entrada os jacarandás
estão em flor, um de cada lado.
E um sorriso, tranquila morada,
à minha espera.
O espaço a toda a roda
multiplica os seus espelhos, abre
varandas para o mar.
É como nos sonhos mais pueris:
posso voar quase rente
às nuvens altas – irmão dos pássaros –,
perder-me no ar.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Aconteceu... que o jacarandá tem flor

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Estava eu a pedalar na bicicleta fixa do ginásio e a ler o Leite Derramado do Chico Buarque, quando me aparece escrito "Peça à minha mãe que lhe indique a escrivaninha barroca de jacarandá (...)".
Parei de ler, as ideias ocuparam-me o pensamento.
Ainda ontem passei pela Avenida Miguel Bombarda, aqui em Lisboa, e tinha visto com prazer como está bonita, toda azul. Tem sido sempre o aspecto estético que me tem chamado a atenção no jacarandá em flor, nunca reparei no tronco ou nos ramos no Inverno, nunca os vi como madeira com utilidade. É aquela cor tão especial que me cativa e que procuro todos os anos nesta época.
Aliás as flores, de qualquer cor, chamam a atenção, prendem-nos. .
Há tempos, num velório, uma criança de pouca idade, andava fascinada a tirar as flores das palmas e coroas que estavam pousadas no chão. Estava muito contente, brincava como se estivesse num jardim, alheia à avó morta. .
No pequeno jardim quase selvagem que existe na frente do meu serviço, é habitual ver as crianças que nos procuram, fazerem ramos de florinhas. .
Tal como as esculturas, nunca percebi os jardins que são só para a vista...como são para mim os jacarandás.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Poema - Filipa Leal

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A CABEÇA É QUE PAGA
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Silêncio
Ela pediu
Silêncio
ao rádio do carro,
aos pais, aos irmãos,
aos chefes, aos amigos.
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Só a cabeça
não respeitou o seu pedido.