sexta-feira, 16 de abril de 2010

Aconteceu...no Serviço Médico à Periferia - 5

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Beira Alta, Terras do Demo, 1980
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A enfermeira parteira vem avisar-me que numa aldeia lá para a serra está uma mulher para dar à luz. E pede-me que vá com ela, há dificuldades em transferir a parturiente para o hospital mais perto que fica a 60 km e a estrada é cheia de curvas. Teremos de ser nós a ir lá. É que parece que a criança vai nascer antes do tempo completo, trata-se de uma urgência.

Metemo-nos a caminho. São uns quilómetros aos saltos pela estrada de pedra que faremos no táxi, carro e chauffeur habituado a estas andanças, a enfermeira também, eu era a estreante e estava inquieta com mais esta aventura.
Estrada com gelo, trajecto perigoso, frio de rachar, mas lá chegamos. Facilmente se identifica a casa, vários homens de chapéu na cabeça estão à porta, como que a esperar-nos. Aberta esta, nuvens de vapor deixam antever panelas com água a ferver, linhos preparados para quando necessário, a cama da grávida e várias mulheres à espera do momento.
A mulher gritava com dores. E de repente, no meio da gritaria há uma breve pausa seguida de um grito acusatório. Com a mão a apontar para mim grita: Foi esta que me engravidou!
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Um grande silêncio se fez... O tempo parece que parou. Todos os olhares ficaram poisados em mim...
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É que uns meses atrás, na minha consulta, os resultados das provas hepáticas desta senhora não enganavam. Deveria, entre outras coisas, interromper a pílula durante uns tempos. Perante a minha indicação, a senhora inquietou-se, não estava com vontade de engravidar. Expliquei como fazer, de outros métodos contraceptivos poderia usar, que precauções tomar e a doente pareceu compreender, aceitou e ficou de voltar para repetir as análises uns tempos depois.
Nunca mais voltou e eu nunca mais pensei no assunto.
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Pois era ela que estava agora ali, não para ter já o parto mas com uma cólica renal.
E outros métodos? Ora Dra., o meu marido não quis, era tudo muito complicado!

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Poema - Mário-Henrique Leiria

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Uma garrafa de gin estava
a preocupar
o pescador
a garoupa e o rodovalho
não tinham aparecido
pró jantar
que fazer?
telefonou ao ministro
da Pesca e do Trabalho
mas o ministro
estava a trabalhar
na cama
com a mulher
foi então
que a garrafa de gin
sugeriu discretamente
porque não
telefonar ao presidente?
telefonaram
o presidente da nação
estava em acção
na cama
com a mulher
nessa altura
até que enfim
encontraram a solução
o pescador
foi para a cama
com a garrafa de gin

quarta-feira, 14 de abril de 2010

terça-feira, 13 de abril de 2010

Aconteceu...que há passeios e paralisias mentais

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Durante muitos anos passávamos um mês na praia da Manta Rota.
De tão pequenina, naquela altura aquela terra quase nem era uma aldeia, antes um lugar, com poucas casas, baixinhas, uma pequena escola primária e uma mercearia cujo lema era "Casa Humberto, tem tudo aqui tão perto".
Quase deserta fora da época de verão, à sua frente um enorme areal quer para a direita, direcção Tavira, quer para a esquerda, na direcção de Vila Real de Santo António.
Dava enormes passeios, em família, com amigos às vezes, outras vezes sozinha. Levantava-me mais cedo que todos e lá ia eu, eu e as aves que ainda não tinham levantado voo depois da noite se calhar lá passada.
Eram uns quilómetros de areia, plana e fácil de andar. Andar e pensar. Naqueles meus passeios solitários, todos os pensamentos e emoções pareciam ter a facilidade de me aparecerem no espírito. Eu acho que "escrevi" dúzias de contos, "desenhei" imensos projectos de quadros, "construí" muitas esculturas com detritos que o mar ia deitando para terra e que eu ia levando para casa.
Sentia aquelas caminhadas solitárias como um espaço de liberdade, descansavam-me e alegravam-me. Eram mesmo férias!
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Tenho-me lembrado muito destes "passeios mentais" no ginásio onde, inicialmente com espírito de recuperação do pezinho, vou diariamente.
Chego e começo por um "passeio" de bicicleta. À minha frente um enorme vidro dá para a piscina, e acima dele muitas televisões com imagem e sem o som correspondente. No ar há quase sempre barulho, ou música ou "corridas" concertadas de bicicletas, as chamadas RTM (rotações por minuto), e que são acompanhada por ordens, urros ou frases ditas em conjunto.
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Por mais que eu pedale, o meu pensamento recusa-se a passear.
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Optei por levar um livro que leio sofregamente enquanto as pernas, de forma automática pedalam. É assim que passa o tempo e aguento o exercício que é suposto fazer.
Depois há a hidroginástica. Vários professores conforme o dia.
Música ritmada mas horrorosa. Nunca fui a uma rave mas imagino lá essa música, electrónica, techno, house ou lá o que é e com o som bem alto.
Suponho que a finalidade é pôr-nos com uma aceleração de pulsações e um aumento de adrenalina para darmos os pulos que nos são pedidos.
Há professores que dão muitas ordens, devem achar assim os exercícios mais dinâmicos. Então eu fico mentalmente presa, a contar, perna esquerda perna esquerda, braço direito, perna esquerda perna esquerda, braço direito, para depois mudar para pontapé perna direita, atrás perna esquerda, ao lado etc. É um cansaço!
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Outros são menos "criativos", os exercícios têm uma repetição simples, consigo fazê-los deixando lá só o meu corpo, e aí tenho dado grandes passeios.
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Nesses dias venho para casa muito mais bem disposta e leve. Quase consigo imaginar que estou a chegar da Manta Rota.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Poema - Ana Luísa Amaral

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BIOGRAFIA (CURTÍSSIMA)

Ah, quando eu escrevia
de beijos que não tinha
e cebolas em quase perfeição!


Os beijos que eu não tinha:
subentendidos, debaixo
das cebolas


(mas hoje penso
que se não fossem
os beijos que eu não tinha,
não havia poema)

Depois, quando os já tinha,
de vez em quando
cumpria uma cebola:

pérola rara, diamante
em sangue e riso,
desentendido de razão


Agora, sem contar:
beijo ou cebolas?

O que eu não tenho
(ou tudo): diário
surdo e cego:

vestidos por tirar,
camadas por cumprir:


e mais:
imperfeição

sábado, 10 de abril de 2010

Aconteceu...a propósito de uma notícia - 6

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Li no jornal de hoje que um rapaz de 8 anos viajou sozinho dos EUA para a Rússia. Tinha sido recentemente adoptado por uma família americana que não suportou o seu comportamento e o "devolveu". Tanto quanto a notícia nos informa, estaria um guia turístico à sua espera para o entregar a quem se interessar pela situação. Ainda diz que foi retirado à mãe tardiamente por alcoolismo materno, certamente com negligência e quem sabe maus tratos.
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Em Portugal "devolver" crianças também acontece. Durante 2009 os números indicam que a 16 crianças aconteceu esta situação. Algumas por razões inaceitáveis, porque passíveis de avaliação prévia, como não se dar bem com primos ou até por ter medo do cão da família, na óptica da família adoptante, claro.
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Mas a adopção é um assunto muito complicado, que envolve várias vertentes.
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Há quem pense (alguns técnicos) que o melhor que pode acontecer às crianças que estão nas instituições é serem adoptadas. Á primeira vista pode parecer, uma vez que ainda se pensa uma família ainda é o ideal para se crescer, mesmo estando ela a sofrer tantas modificações.
De um ponto de vista economicista é certamente o mais barato para o Estado, e isso tem um grande peso em muitas decisões.
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Há estudos que defendem que nem todas as crianças podem e devem ser adoptadas. Se há aquelas que têm características para se adaptarem a uma família sem criar grandes problemas, haverá outras que por apresentarem características psicológicas complicadas, nomeadamente pelos comportamentos e inadaptação permanente, são extremamente difíceis de serem integradas em meios pequenos, necessitando de uma família com características terapêuticas, o que não é fácil encontrar. Deveria haver instituições especiais para estas crianças. Haverá ainda outro grupo, que apresenta problemas ainda mais graves, cuja manutenção em grupo alargado como uma instituição será mesmo a melhor forma de o ajudar a crescer.
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E há as famílias para os acolher, que são diversas e sobretudo têm diferentes motivações para querer ficar com uma criança. Muitas vezes razões quase só pessoais e não de generosidade como se pretende por vezes pensar. E estão no seu direito.
Ouvi um dia destes alguém criticar os possíveis adoptantes por quererem crianças pequenas e brancas. Mas será isso muito estranho na sociedade a que pertencemos? Não quererão os pais adoptarem crianças "como se" fossem mesmo seus filhos?
Lembro-me de ter conhecido um casal de origem diferente, indiana e africano, que adoptaram duas crianças, uma indiana e outra africana, e tiravam imenso prazer por as pessoas pensarem que uma criança tinha saído ao pai e a outra à mãe. Cumpriam verdadeiramente a função pela qual tinham sido adoptadas, uma vez que o casal era estéril.
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Crianças e famílias têm de ser muito bem estudadas por forma a evitar situações de "devolução".
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Cada criança que é adoptada já viveu pelo menos uma vez uma situação de perda.
Uma nova experiência falhada vem reacender o sofrimento do abandono, com enormes custos psicológicos para ela.