sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Poema - José Tolentino Mendonça

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A ESTRADA BRANCA
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Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto.
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folhas tremiam
ao invisível peso mais forte
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Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Aconteceu...acusações infundadas, desculpas públicas

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Já houve tempos em que as páginas dos anúncios e da necrologia faziam parte da minha leitura de um jornal. Não me perguntem qual a graça, nunca comprei nada através desses anúncios. Quanto à necrologia havia qualquer coisa mágica, supersticiosa, como se tivesse a necessidade de ver que não havia ninguém conhecido, até mesmo próximo. Deixei-me disso.
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Hoje não sei como, dei comigo a ler um anúncio. Emoldurado dentro de um rectângulo preto, era um pedido de desculpas, o que me parece que não é muito habitual. O nome da pessoa, trabalhadora no sítio tal, que pedia desculpa à Sra. D. Fulana a que se seguiam vários apelidos, por a ter acusado do roubo de 50€ no local do emprego. E seguia-se um rol de mais desculpas e lamentos por lhe ter causado tanto incómodo, e etc. e tal.
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Aqui há uns anos, estive no Grande Hotel de umas termas a tratar da minha sinusite e a descansar. Um dia de manhã saio do quarto, dei as minhas voltas, e eis quando sinto alguém muito perto de mim. Eram dois homens, eventualmente familiares entre si e também eles hóspedes do hotel. Desculpamo-nos mutuamente pelo discretíssimo encontrão, quando de repente percebo que o meu porta moedas, grande com espaço para notas e cartões, de uma pele verdadeira e muito bonita, tinha desaparecido. Tal como 1 mais 1 são 2, julguei ter logo percebido quem mo tinha surrípiado da mala.
Dirigi-me à recepção do hotel, onde me conheciam bem pois há anos que para lá ía, e perguntei se conheciam aqueles senhores, se sabiam quem eram, mas sem dizer a razão. Não conheciam, eram novos lá no sítio, estavam há poucos dias. Hesitei, se devia já contar o roubo.
Eu tinha a certeza de que tinha saído do quarto com o porta-moedas e eles tinham sido as únicas pessoas a estar perto de mim. Tinham sido eles quase com toda a certeza!
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Com o coração aos saltos de sobressalto e excitação, que não há nada que mais me irrite do que ser roubada, subi ao quarto para pensar o que fazer. A camareira ainda não tinha passado a fazer a cama e as arrumações. Resolvi puxar as orelhas à roupa da cama para me deitar um pouco e sossegar. E nesse movimento de levantar os lençois, ei-lo que lá o encontro, escondidinho, certamente caído quando o ia a meter na mala.
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E se eu tivesse acusado os tipos, mas que grande embaraço que tinha sido!
Será que teria havido no jornal um pedido de desculpas minhas para limpar a honra daqueles hóspedes manchada com um falso testemunho meu?
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"Nunca tenho dúvidas e raramente me engano"? Não, felizmente!

Aconteceu...cartoon

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Poema - Alberto Pimenta

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SUGESTÃO

já tentaste praticar o bem
fazendo mal?

já tentaste praticar o mal
fazendo bem?

já tentaste praticar o bem
fazendo bem?

já tentaste praticar o mal
fazendo mal?

já tentaste praticar o bem
não fazendo nada?

já tentaste praticar o mal
fazendo tudo?

já tentaste praticar tudo
não fazendo nada?

e o contrário, já tentaste?
já?

seja qual for a tua resposta,
não sei que te diga
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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Aconteceu...numa esplanada

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Fiz com a minha mãe, desde que me lembro, um exercício criativo que nos divertia imenso. Sentadas numa esplanada ou noutro lugar público, elegiamos uma das pessoas que nos rodeava e inventávamos-lhe a "sua" história. Tirávamos-lhe a "fotografia" e imaginávamos como ela seria, como teria sido, qual a profissão, a vida familiar, e até o feitio. Às vezes um futuro. Este jogo dava-nos um enorme prazer e uma grande cumplicidade. Nesta invenção, muito de projectivo era lá posto.
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Chamei-lhe jogo criativo. De facto já aconteceu encontrar pessoas que ficam completamente bloqueadas com ele, incapazes de criar uma personagem a partir da observação de alguém a quem se tiram algumas características.
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Também já encontrei quem ficasse escandalizado com ele, achando ser um acto de cusquice, o que não é de todo, porque se trata de fantasia.
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Mas também o acto de cusquice é em algumas situações divertidíssimo. E é cada vez mais fácil de o fazer, eu diria mesmo impossível de não o fazer. Todos os dias encontramos gente que fala alto de intimidades ao telemóvel. Ficamos a saber os problemas da família, os enganos dos vizinhos, as trapalhadas com os amigos, as gracinhas dos filhos, etc.
Há uma enorme falta de pudor com o telefone ambulante.
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Escrevo este pequeno texto numa esplanada a céu fechado num centro comercial, enquanto espero umas fotocópias.
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Não os vejo porque estão atrás de mim, mas sei que são três homens, na casa dos cinquenta/sessenta anos, que se encontraram bastante tempo depois de uma época de fadistia que viveram em comum. Estão eufóricos e dos seus telemóveis ligam para outros do mesmo grupo com quem tiveram grandes farras, passam o telefone de mão em mão e combinam encontros. Vou sabendo, por ouvir, as histórias das suas farras.
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Cusca? De todo!

domingo, 19 de setembro de 2010

Aconteceu...foto - Fim-de-tarde

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.......................................Foto - Magda

sábado, 18 de setembro de 2010

Poema - A. M. Pires Cabral

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Quando um dia - é fatal -
pousar sobre os meus ombros
aquele assíduo, rigoroso abutre
que voa sem rumor em círculos cautos
como a tirar as medidas do meu corpo -
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saibam todos que para esse tempo
tenho ainda alguns gestos de recurso
(que não revelo), com que espero
morrer mais comodamente.