segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Parabéns Sérgio Godinho




171º dia de recomeço do blog


Parabéns Sérgio Godinho! 75 anos!
Como tenho pena de não ter comprado atempadamente o bilhete para o espectáculo de hoje.

Etelvina


Ele fala de como algumas crianças que foram negligenciadas, maltratadas ou abandonadas  precocemente tentam sobreviver, apesar das projecções malignas que receberam. Neste caso, através de uma hipermaturidade defensiva na fase da vida a que estes versos se referem. Sem sucesso. 



Usei alguns destes versos numa parte de um capítulo sobre Promoção e Protecção das crianças que escrevi em Outubro 2014. Exemplificavam tão bem o que eu teria de teorizar, a importância de uma infância organizada e feliz verso abandono e maus tratos.

Etelvina com seis meses já se punha de pé
Foi deixada num cinema depois da matiné
Com um recado na lapela que dizia assim
"Quem tomar conta de mim,
Quem tomar conta de mim
Saiba que fui vacinada
Saiba que sou malcriada"

Etelvina com dezasseis anos já conhecia
Todos os reformatórios da terra onde vivia
Entregaram-na a uma velha que ralhava assim
"Ai menina sem juízo
Nem mereces um sorriso
Vais acabar num bueiro
Sem futuro nem dinheiro"
Eu durmo sozinha à noite
Vou dormir à beira rio à noite à noite
Acocorada com o frio à noite à noite
Etelvina era da rua como outros são do campo
Sua cama era um caixote sem paredes nem tampo
Sua janela uma ponte que dizia assim:
"Dentro das minhas cidades
Já não sei quem é ladrão
Se um que anda fora das grades
Se outro que está na prisão"
Etelvina só gostava era de andar pela cidade
A semear desacatos e a colher tempestade
A meter com os ricaços a dizer assim
"Você que passa de carro
Ferre aqui a ver se eu deixo
Venha cá que eu já o agarro
Dou-lhe um pontapé no queixo"
Eu durmo sozinha à noite
Etelvina já cansada de viver sem ninguém
A não ser de vez em quando amores de vai e vem
Pôs um anúncio no jornal que dizia assim
"Mulher desembaraçada
Quer viver com alma irmã
De quem não seja criada
De quem não seja mamã"
Etelvina já sabia que não ia encontrar
Nem um príncipe encantado nem um lobo do mar
Só alguém com quem pudesse dizer assim
"O amor já não é cego
Abre os olhinhos à gente
Faz lutar com mais apego
A quem quer vida diferente"
O seu homem encontrou-o à noite
A dormir à beira rio à noite à noite
Acocorado com o frio à noite à noite


Poema de Sérgio Godinho