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segunda-feira, 21 de junho de 2010

Aconteceu...granizada nos pomares e recordações do odor das maçãs de Moimenta da Beira

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Já aqui contei várias histórias do meu Serviço Médico à Periferia, em Moimenta da Beira.
O Centro de Saúde ocupava o rés do chão de uma moradia grande, antiga prisão desactivada. Como habitação, foi-nos distribuído o 1º andar, antiga casa do carcereiro. Da prisão restava dentro de nossa casa, um antigo quadro eléctrico com muitos botões, campainhas e luzes das celas, essas já transformadas.
Entravamos por uma porta, a que se seguia um corredor pequeno, e depois havia as escadas. Por baixo das escadas uma pequena divisão, aproveitamento do espaço, sem janelas.
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Poucos dias depois de ocuparmos a casa, várias pessoas nos vieram oferecer caixas de maçãs. Uns peros amarelos e umas maçãs vermelhas com o melhor cheiro que queiram imaginar.
Ensinaram-nos a forrar o chão daquele espaço que se transformou em arracadação de maçãs com cartões, e depois sem que elas se tocassem, dispô-las, lado a lado, no chão. E assim ficaram um ano, sem apodrecerem nem um bocadinho. E ainda vieram em caixotes para Lisboa para acabarem em compota.
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Mas, o que é inesquecível, é o maravilhoso cheiro a maçã que nos acompanhou durante esse ano pela casa toda, mal se transpunha a porta da rua.
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Esta semana durante 1 hora caiu uma granizada em 10 freguesias de Moimenta da Beira. As maçãs que se salvarem vão ser um bem precioso.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Aconteceu...no Serviço Médico à Periferia – 2

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Ao jantar, a auxiliar de acção médica pôs o tabuleiro na mesa de apoio e levantou a tampa do prato aquecido para eu ver o bom aspecto da comida. Pergunto-lhe com alguma ironia se não há vinho para acompanhar o piteú, ao que ela me responde com um ar muito sério que “no hospital não se serve vinho” e aponta-me para a garrafa de água de Fastio que está a meu lado na mesa-de-cabeceira.

O meu pensamento transporta-me de imediato para o meu Serviço Médico à Periferia.

Uma vez que Moimenta da Beira não tinha hospital, as urgências eram feitas em Armamar, vila situada bem em cima do rio Douro. O hospital, oferecido por um “brasileiro” da terra era um bom edifício e razoavelmente equipado. Enfermarias para cerca de 50 doentes, homens e mulheres, salas de cirurgia, de dentista, de radiologia, e maternidade.
As enfermeiras eram religiosas. Havia também um funcionário sem formação específica que às vezes era porteiro, outras vezes auxiliar de acção médica e que também conseguia fazer radiografias a ossos longos em pessoas magras. Médicos seniores, nenhum, só nós os policlínicos, P3 como nos alcunhávamos, no 3º ano depois de ter acabado a licenciatura e no 1º com autonomia clínica.
Como devem perceber, não eram usadas parte das potencialidades existentes no hospital.

No meu 1º dia de urgência, tive de internar 5 doentes. Nenhum dos casos que internei era grave, mas as distâncias e os poucos transportes levava-nos a deixar no hospital estes casos com a finalidade de fazer algum tratamento que noutras condições se faria em ambulatório.

E ao recolher os dados clínicos, a todos perguntei sobre os seus hábitos alcoólicos. Bebiam todos um garrafão por dia. Perante tal coincidência e mais uma vez pela minha falta de cultura local, optei por pensar que "garrafão" era um regionalismo. Longe de mim saber que da jorna faziam parte 5 litros de vinho que eram bebidos durante o trabalho!

Essa noite não poderá nunca ser esquecida. Os tais doentes do garrafãozinho entraram todos em estado de privação, com agitação psicomotora, estado confusional, tremor, um deles teve mesmo alucinações, enfim, quadros de delírium tremens. Um, grande e forte, tentava apavorado, em pé em cima da cama, apanhar bichos que só ele via na parede.E todos no mesmo quarto!

Eu e a minha colega, que embora não estivesse de urgência me fazia companhia, uma agarrada ao telefone a pedir indicações a um colega da psiquiatria, a outra a fazer cumprir as instruções, lá conseguimos sedar os doentes e resolver a situação.

Escusado será de dizer, claro está, que ficou instituído a partir desse dia “dieta alcoólica” para certas pessoas, um copo de água cheio de vinho a cada refeição.

sábado, 2 de janeiro de 2010

aconteceu no Serviço Médico à Periferia - 1

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Faz hoje 30 anos que iniciei o Serviço Médico à Periferia (SMP), numa vila do norte frio de Portugal, a mais de 300 quilómetros de distância e por más estradas.

Para quem não sabe o que isso foi, direi que foi uma tentativa de dotar de médicos zonas pouco ou nada cobertas na área da saúde. Era no 3º ano depois terminado o curso de medicina e antes de se iniciar a formação para especialista, e tinha a duração de 1 ano.

A colocação era feita por escolha voluntária de uma terra e depois por sorteio quando o número de inscritos ultrapassava as vagas. Nesse dia a sorte não estava do meu lado e fui saltando de terra em terra até ficar lá longe de Lisboa, numa terra da qual nunca tinha ouvido falar.
Li depois bastante sobre esta zona, também conhecida por Terras do Demo, uma vez que Aquilino Ribeiro por ali nasceu e muito escreveu sobre ela.

Eu e uma colega, que nos conhecíamos relativamente pouco, saímos de Lisboa, comigo a guiar, com o espírito de quem vai para uma missão, obrigatória, quiçá para ambiente de guerra.

Passei por casa dela para a buscar e a mãe confidenciou-me que tinha estado para chamar o médico porque a filha de noite só vomitava e sentia que ia morrer…

A viagem fez-se em silêncio.

Os psicanalistas que interpretem, mas em vez de irmos parar a Moimenta da Beira, no distrito de Viseu, fomos parar a Aguiar da Beira, distrito da Guarda. Encontramos uns grandes pedregulhos e ficamos aliviadas ao fazer os quilómetros que nos separavam do verdadeiro destino, supondo que teria de ser melhor.

Fomos para lá obrigadas, mas ao fim de pouco tempo estávamos integradas. Aprendemos a gostar das coisas simples da vida, das gentes, das comidas, das paisagens, das festas populares. Fizemos amigos que se mantêm até hoje.
O regresso, um ano depois também foi triste, uma parte de nós ficou por lá.

E tal como no filme que referi no escrito de ontem, e a propósito das diferentes linguagens, vou recordar um doente que vi no 1º dia de consulta. Começou por me dizer que a razão da consulta era por “ir muito ao campo”. Lisboeta que sou, e jóvem que era, não achei que isso fosse muito grave e fiz-lhe ver as vantagens do campo e do ar puro. Ao que ele me disse que eu não teria percebido bem, e quis ajudar-me dizendo que “dava demais do corpo”.
Iinterrompi a consulta e fui perguntar à senhora enfermeira que me dissesse qual o significado destas frases, e depois do o saber pareceu-me óbvio, o homem estava com diarreia!

Lição nº 1, passar a estar atenta às diferentes formas de denominar as mesmas coisas, e à cultura local, o que só nos enriqueceu
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