quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Aconteceu...o valor afectivo daquela aguarela

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Era uma bonita aguarela! Assinada, legível, mas de nome não sonante. Já devia ter muitos anos, uma centena? Mais? Estava num lote de herança de um antepassado que gostava de arte. Bonita, sim, mas esteve anos guardada dentro de um armário.
Há coisas assim, envelhecem sem ter uso nem louros.

Um dia pegou nela e reparou como era bonita. Começou a pensar que gostaria de olhar para ela mais frequentemente...naquela parede ficaria bem. Começou a gostar, achar cada vez mais bonita, bem pintada, aguarela, uma técnica tão difícil! E por gostar, ela ganhou outro valor.
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Com cuidado ouve a opinião do funcionário da loja das molduras. Hesita, esta ou aquela, acaba por escolher e deixa-a lá. Estará pronta daqui a quinze dias, muito obrigada, cá a virei buscar, responde.
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No dia seguinte recebe um telefonema do empregado da loja dizendo-lhe que um coleccionador tinha passado por lá, tinha visto o quadro e estaria interessado em o comprar, quanto quereria por ele. Surpresa, logo agora que tinha olhado para ele com maior cuidado e já lhe tinha arranjado sítio. Mesmo assim respondeu, se o coleccionador o quer, ele que ofereça. E assim apareceu um valor aparentemente simpático. Desconhecendo o real valor dele, mas sentindo subitamente uma maior ligação com o quadro, a pessoa exclama se fosse por dez vezes mais quem sabe...
No dia a seguir novo telefonema, a mesma pessoa a oferecer dez vezes mais.
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Mas será que isto é assim tão valioso? Que importa, se já gostava dele. E recusou.
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Ocupou o lugar na parede que lhe estava destinado. E que bem que fica!

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Poema - Maria do Rosário Pedreira

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Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
Traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
É sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,

Se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós

o tempo desenha-se assim, devagar.
Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Aconteceu...que o avô era cego!

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Da janela da minha sala vejo nuvens brancas, espessas. Se olhar pela outra janela, mais para nordeste, as nuvens são uma mistura de branco e cinzento. De ambos os lados se vê um azul muito bonito que fica por cima delas. Algumas estão tão ligadas entre si, que fazem grandes corredores, deuses e figuras da mitologia. Ali mais longe, está uma que é claramente um castelo. Tem ameias e torreões nas extremidades. Não consigo ver guardas, princesas, príncipes, rainhas ou reis, mas posso imaginá-los. E poderia deixar-me voar por entre elas, entrar e tomar conhecimento com os seus habitantes. Depois contava-vos a história "verdadeira" da minha viagem.
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Aprendi muito cedo com a minha Mãe este jogo de inventar. Deitadas no chão em cima das ervas ou na areia da praia, viajávamos ambas pelo céu fora. Aprendi também a fixar um ponto e deixar-me ser atraída por ele, como se uma força me elevasse do chão. Disto, embora me tenha acontecido nunca gostei, era uma espécie de vertigem que eu não comandava.
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Estes jogos simples e criativos, muitos miúdos de hoje nunca fizeram. As maquinetas electrónicas não os têm.
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Um dia conversava eu com o João de 7 anos, quando ele gritou apontando para o céu "Olha ali, é mesmo um carneiro!". E era, sem dúvida nenhuma, mais uma ovelha, mais outra, e outra, lá veio o cão e incrível, por fim até vimos o pastor. O João olhava e criava cenários que ia completando. E conversando foi-me contando que era brincadeira frequente lá em casa.
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Até aqui tudo normal. Mas quando percebi que era o avô o promotor do jogo, emocionei-me. É que o avô era cego!

sábado, 29 de janeiro de 2011

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Poema - Sophia de Mello Breyner Andressen

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INTERVALO I
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Eu só quero silêncio neste porto
Do mar vermelho, do mar morto
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Perdida, baloiçar
No ritmo das águas cheias
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Quero ficar sozinha neste espanto
Dum tempo que perdeu a sua forma
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Quero ficar sozinha nesta tarde
Em que as árvores verdes me abandonam
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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Aconteceu...que os médicos, para além de profissionais, são pessoas

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Ouço frequentemente falar da frieza dos médicos. Pessoas que se queixam da pouca ternura e simpatia que sentem vinda dos médicos, quando estão doentes ou têm familiares doentes.
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Não que não os haja. Há de tudo como em todas as profissões, uns simpáticos, educados, competentes, outros bruscos, frios, demasiado calados, ou faladores. Podia enumerar imensas outras hipóteses. Cada pessoa é diferente e o curso de medicina não altera as pessoas.
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Ouvi recentemente uma pessoa que tem uma filha com doença grave, queixar-se que não conseguia saber ao certo o estado dela, o curso da doença, a resposta aos tratamentos. Quando se aproximavam do médico e lhe diziam que gostariam de de ser esclarecidos nalgumas coisas, ele respondia invariavelmente que teria de ficar para o dia seguinte.
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No entanto e como comecei por dizer, os médicos são pessoas, todas diferentes.
Perante a dor dos outros, há alguns que ficam tão aflitos que reagem pela fuga, evitam confrontar-se com os doentes e famílias. Parecem frios e se calhar o que são é demasiadamente frágeis.
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Numa das primeiras vezes que fiz urgência, assisti à morte de um rapaz de 20 anos, vítima de um acidente de viação. Ainda esteve umas horas em coma. Uma colega, jovem como eu, foi encontrada a chorar agarrada ao doente que ela não conhecia. Foram-na buscar e é uma imagem que me acompanhou sempre. A sua sensibilidade teria impedido qualquer eficácia, caso tivesse sido preciso. Não sei se "ganhou calo" ou se desistiu da profissão.
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Há dias em que perante certas situações, a consulta acaba e o doente fica cá dentro. Depositam em nós o seu sofrimento. Bem queremos pensar noutra coisa, mas voltamos sempre a pensar nele.
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Nestas situações, não há "frieza" que resista!