Cá está um dos que não fala, pensei.
Vejo-o por trás, parece pequeno e magro, cabelo muito bem penteado talvez com um pouco de brilhantina (escrevi brilhantina e não gel, curioso, talvez porque o homem tinha um ar de antigamente) e um bigode escova preto. Guiava com cuidado.
Ele não falava mas havia um rádio de onde saía fado.
Arrisco “isto é a nova estação Amália?”. Na mouche, a língua destravou.
Criado no bairro Alto, desde miúdo frequentou o ambiente do fado, aos 13 anos já ajudava por vezes na Adega Machado, despejando uns cinzeiros, fazendo uns recados.
Uma noite um americano deu-lhe uma gorjeta gorda.
Ao chegar a casa entregou o dinheiro à mãe. O pai viu e acusou-o de o ter roubado e obrigou-o a ir devolver. Foi com ele à adega e o Machado deu um raspanete ao pai, seu bêbado, achas que o teu filho é ladrão? Tu devias ter orgulho no teu filho!
Continuou com o tio Alfredo, que conheceu tão bem, e mais este e aquela. E lembra daquela vez que estavam lá no Machado uns tipos da PIDE, a senhora sabe quem eram e o tio Alfredo não queria cantar e eles queriam ouvi-lo. Então mandaram-lhe uma nota de dinheiro, e eu interrompo e digo “e ele não cantou à mesma”, ri-se, cantou, claro que cantou!
Do rádio continuam a sair fados. Atiro “este é o Tristão da Silva?” Parece-me o Maurício diz ele. Não lhe disse que nem sabia que havia um Maurício. Que ele começa a falar na nova geração de fadistas, uma categoria. E conta com um enorme orgulho que um dia destes uma senhora mandou-o parar e ele viu logo que era a Ana Moura. “Não desfazendo”, é uma frase que acho uma enorme piada “é uma senhora a sério, inteligente, culta, e que voz!” “E imagine só a coincidência, não é que começa aqui no rádio a tocar um fado cantado por ela? Não me volta a acontecer outra assim, ai isso não”.