domingo, 25 de dezembro de 2011

Poema - Álvaro Feijó

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NATAL

Nasceu.
Foi numa cama de folhelho
entre lençóis de estopa suja
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroa de baionetas
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Poema - José Alberto Oliveira

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A INOCÊNCIA tem um preço.
A maioria recusa pagá-lo.
Lá em cima, cortejando o sol, o milhafre vigia.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Poema - Aníbal Raposo

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AUSÊNCIA
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É estranho...
Quando deixas a ilha
Sinto os meus dias prenhes
Do imenso vazio da tua ausência

Resta o teu cheiro...
No quarto, na almofada da cama
Em cada canto da casa...

Confesso que nunca o sinto assim tão à flor da pele
No compasso
voraz do nosso dia-a-dia

Só então me apercebo
Como a usura do tempo
Traça, sem darmos conta, superfícies planas
Esbate, sem piedade, as vivas arestas
Da cor dos nossos sentimentos

Amo-te em fogo juvenil quando estás longe

Habituo-me a ti
Se estás por perto.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Aconteceu...dolorosa descida à terra

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Conheço-a há muito tempo. Anda quase sempre bem disposta, ri, fala, é frequentemente o centro da festa. A alegria e a vivacidade, com um humor mais para o eufórico, tudo são facilidades, dona de tudo, cheia de entusiasmo, numa roda viva que ocupam o tempo quase todo. Tanto, tanto, que quase cansa de estar com ela. Com uma pequena curiosidade, ela...nunca se cansa.
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Um dia parece que aterrou no chão, pés assentes na terra e a cabeça só pensava...que não tinha tantas razões para andar tão satisfeita, que a vida é difícil e o futuro preocupante, que há situações que nem sempre se dominam. As cores brilhantes que povoavam a sua cabeça mudaram, tudo era a preto e branco.
Ficou cabisbaixa, triste, sempre cansada. 
Adormecida entrava logo nuns sonhos tristes, em que não se vislumbrava uma saída para a história interna por ela inventada a dormir. Até os sonhos contribuíam para aumentar o desânimo.
Começou a isolar-se. Foi preciso pedir ajuda médica e psicológica.
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Eventualmente ambos os estados pertencem à mesma moeda. Mas quem não gosta mais da euforia que da tristeza?

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Poema - Nuno Júdice

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RECEITA PARA FAZER O AZUL
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Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.