terça-feira, 3 de agosto de 2010

Poema - Filipa Leal

.
SE AO MENOS A MORTE
.
Ela morria tantas vezes
em tiroteios à porta de casa
que já não sabia morrer para sempre
assim
de uma só vez.
Se ao menos marcasse um dia
para a morte, uma hora certa
como no dentista
que apesar de tudo nos faz esperar
onde apesar de tudo
não sabemos quando será a nossa vez.
Se ao menos a morte tivesse revistas
e gente na sala de espera
não estaríamos tão sós
tão vivos nessa ideia final
nesse desconforto.
Poríamos o nome na lista
quando estivéssemos prontos
sabendo que seria facil desmarcar
marcar para outro dia
ou simplesmente
não comparecer.
Depois, ficaríamos com a dor,
com o terror
de passar sequer naquela rua
como ela à porta de casa.
Ela que morria tantas vezes
porque morria de medo de morrer.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Aconteceu...2666 de R. Bolano é um minúsculo livro de bolso quando comparado com o acordão do caso Casa Pia

.
Peço desculpa se alguém já leu o post de hoje. De facto comecei a escrevê-lo ontem, e não estava pronto. Por nabice minha, em vez de o deixar gravado em rascunho deixei-o publicado. Como não era assim que o queria, retirei-o e vou postar a versão final.

Só este mês a leitura da sentença do processo Casa Pia foi adiada por duas vezes. Foi alegada falta de tempo para escrever o acórdão.
" A elaboração do acórdão "pressupõe a avaliação, a valoração e a decisão quanto à prova. E a prova está reunida em 66 mil páginas e 570 apensos, alguns dos quais com mais de dez volumes. O despacho de pronúncia tem cerca de 200 páginas e as contestações cerca de 1300" afirmou o Conselho Superior da Magistratura.

Na piscina, e debaixo de um pinheiro, uma senhora debatia-se com o 2666 do Roberto Bolãno, com que há meses me aventurei, faltando-me só um restinho, que por cansaço ficará para outra altura.
O 2666, constituído por 5 grandes capítulos, foi editado num só livro, por desejo da família, após morte do escritor. Na verdade são 5 livros que podiam ter sido editados em separado, embora haja elos de ligação entre eles. Centenas de crimes de morte sobre mulheres. Nunca se acusa ninguém de culpado.

O 2666, será um pequeno livro de bolso ao pé do citado acórdão.
Não sei de quem foi o interesse em que o processo Casa Pia fosse um único e não fossem realizados vários processos. Acredito que teria sido mais célere e a leitura das sentenças mais rápida.

E qual será o fim? Como acabará a história do processo da Casa Pia?

sábado, 31 de julho de 2010

Poema - Fernando Pinto do Amaral

.
OLHAR
.
Entre o dia que morre
e a noite que vem
uma lágrima escorre
no silêncio de alguém
.
- silhueta que vi
e ainda me seduz
ao passar por aqui
como um raio de luz
.
cada vez mais perdido
do seu resto de sol
agora adormecido
nesta sombra que engole
.
cada último passo
a caminho do nada
como se nenhum espaço
fosse a minha morada

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Aconteceu...ligações psicológicas perigosas entre mães e filhos

.
(...) O soldado Milty telefona do Japão. "Mamã", diz ele, "é o Milton, tenho óptimas notícias! Conheci uma rapariga japonesa maravilhosa e casámo-nos hoje. Assim que for desmobilizado levo-a aí a casa, mamã, para vocês se conhecerem." "Pois claro", diz a mãe, "tens de a trazer cá." "Oh, óptimo, mamã", diz o Milty, "óptimo - só que estou agora a pensar, o teu apartamento é tão pequenino, onde é que eu e a Ming Toy havemos de dormir?" "Ora!", diz a mãe, "na cama, claro! Onde é que havias de dormir com a tua noiva?" "Mas então onde é que tu dormes, se nós dormimos na cama?" Tens a certeza que há lugar para nós, mamã?" "Oh Milton querido, por amor de Deus", diz a mãe, "está tudo bem, não te preocupes, há lugar de sobra: assim que desligares o telefone, vou-me matar."(...)
in O Complexo de Portnoy de Philip Roth
.
Cristiano Ronaldo "apareceu" com um filho...sem mãe. O facto de dizer que a mãe do bebé foi uma barriga de aluguer, tem de ser visto como uma exclusão (real e psicológica) da existência da mãe. Não será possível à criança fantasiar sobre ela, uma vez que não existe.
A mãe do futebolista veio dar uma ajudinha à compreensão simbólica da situação quando terá afirmado para uma revista cor de rosa "O meu neto é parecido com o pai e com a avó".

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Poema - Nuno Júdice

.
ACORDAR
.
Um dia, quando começa, parece igual aos
outros. A mesma luz que entra pela janela,
ruídos de obras e automóveis, vozes... Mas
o que nesse dia me falta é outra coisa: a tua voz, a surpresa de cada instante que me dás,
uma luz diferente que não vem de fora, da
mesma rua e do mesmo céu, mas de dentro
de ti. Assim, o que faz a mudança do mundo
e das coisas não é o mundo nem as coisas:
somos nós, e a relação que nos prende um ao
outro - isso que, não sendo nada para fora
de nós, é tudo o que temos nesta vida.