sábado, 10 de abril de 2010

Aconteceu...a propósito de uma notícia - 6

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Li no jornal de hoje que um rapaz de 8 anos viajou sozinho dos EUA para a Rússia. Tinha sido recentemente adoptado por uma família americana que não suportou o seu comportamento e o "devolveu". Tanto quanto a notícia nos informa, estaria um guia turístico à sua espera para o entregar a quem se interessar pela situação. Ainda diz que foi retirado à mãe tardiamente por alcoolismo materno, certamente com negligência e quem sabe maus tratos.
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Em Portugal "devolver" crianças também acontece. Durante 2009 os números indicam que a 16 crianças aconteceu esta situação. Algumas por razões inaceitáveis, porque passíveis de avaliação prévia, como não se dar bem com primos ou até por ter medo do cão da família, na óptica da família adoptante, claro.
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Mas a adopção é um assunto muito complicado, que envolve várias vertentes.
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Há quem pense (alguns técnicos) que o melhor que pode acontecer às crianças que estão nas instituições é serem adoptadas. Á primeira vista pode parecer, uma vez que ainda se pensa uma família ainda é o ideal para se crescer, mesmo estando ela a sofrer tantas modificações.
De um ponto de vista economicista é certamente o mais barato para o Estado, e isso tem um grande peso em muitas decisões.
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Há estudos que defendem que nem todas as crianças podem e devem ser adoptadas. Se há aquelas que têm características para se adaptarem a uma família sem criar grandes problemas, haverá outras que por apresentarem características psicológicas complicadas, nomeadamente pelos comportamentos e inadaptação permanente, são extremamente difíceis de serem integradas em meios pequenos, necessitando de uma família com características terapêuticas, o que não é fácil encontrar. Deveria haver instituições especiais para estas crianças. Haverá ainda outro grupo, que apresenta problemas ainda mais graves, cuja manutenção em grupo alargado como uma instituição será mesmo a melhor forma de o ajudar a crescer.
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E há as famílias para os acolher, que são diversas e sobretudo têm diferentes motivações para querer ficar com uma criança. Muitas vezes razões quase só pessoais e não de generosidade como se pretende por vezes pensar. E estão no seu direito.
Ouvi um dia destes alguém criticar os possíveis adoptantes por quererem crianças pequenas e brancas. Mas será isso muito estranho na sociedade a que pertencemos? Não quererão os pais adoptarem crianças "como se" fossem mesmo seus filhos?
Lembro-me de ter conhecido um casal de origem diferente, indiana e africano, que adoptaram duas crianças, uma indiana e outra africana, e tiravam imenso prazer por as pessoas pensarem que uma criança tinha saído ao pai e a outra à mãe. Cumpriam verdadeiramente a função pela qual tinham sido adoptadas, uma vez que o casal era estéril.
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Crianças e famílias têm de ser muito bem estudadas por forma a evitar situações de "devolução".
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Cada criança que é adoptada já viveu pelo menos uma vez uma situação de perda.
Uma nova experiência falhada vem reacender o sofrimento do abandono, com enormes custos psicológicos para ela.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Poema - Maria do Rosário Pedreira

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Os amantes aparecem no verão, quando os amigos partiram
para o sul à sua procura, deixando um lugar vago
à mesa, um bilhete entalado na porta, as plantas,
o canário, um beijo e um livro emprestado: a memória
das suas biografias incompletas. Os amigos
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desaparecem em agosto. Consomem-nos as labaredas do sol
e os amantes que chegam ao fim da tarde
jantam e de manhã ajudam a regar as raízes das avencas
que os amigos confiaram até setembro, quando regressam.
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trazem saudades e um romance novo debaixo da língua.
Levam um beijo, os vasos, as gaiolas e os amantes
deixam um lugar vago na memória, cabelos na almofada,
uma carta, desculpas, e um livro de cabeceira que os
amigos lêem, pacientes, ocupando o seu lugar à mesa.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Aconteceu...excesso de zelo?

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Chamava-se Benfica, e era vagabundo. Andava de terra em terra, com uma sacola de pano na ponta de um pau que trazia ao ombro. Lá dentro todos os seus pertençes. Esmolava sempre bêbado. Pedia comida e sítio para dormir. No cabelo mal amanhado e cinzento, havia restos de palha e de erva que eram marcas da cama da véspera. Enquanto se aguentava em pé era divertido, fazia macacadas que punham as crianças a rir. Em bando corriam atrás dele, imitavam-lhe os gestos. E ele gritava de vez em quando Benfica! E todos se riam.
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Passava pela aldeia da minha Avó e o Quintal de São João que era propriedade dela, era um dos seus poisos. Tinha uma ruína do que em tempos teria sido uma casa e o Benfica achava o espaço muito aprazível.
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Na época, há uns 50 anos, na casa da minha família dava-se comida no prato a quem pedia. Um prato de sopa, algum conduto como se dizia, pão e até vinho e fruta. A loiça usada pelos pobres era depois desinfectada pelas "criadas" com água a ferver. Era assim na aldeia mas também em Lisboa, onde os cegos ainda cantavam na rua e o acompanhante, habitualmente um coxo, apanhava as moedas que lá de cima, do 3º, 4º ou 5º andar se mandavam embrulhadas num papelinho.
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O Benfica aparecia, ficava um ou dois dias e seguia viagem. Sempre bêbado e aparentemente bem disposto. Ou a cair para o lado e a adormecer. Depois ficava-se sem saber dele. Nunca soube se ele tinha uma rota fixa, ou era ao sabor das curvas etílicas que seguia. Sei que voltava sempre e atrevo-me a dizer, era esperado. Ninguém o enxotava, fazia parte da vida da aldeia, onde a passagem de um carro ainda era notícia.
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Teria eu 4 anos quando a minha Mãe tirou a carta e comprou um carocha, DD-38-19, cinzento prateado. Quando falávamos dele dizíamos o Voxinho, como se de uma pessoa se tratasse. Até tinha apelido também, por acaso os meus. Era um personagem importante na nossa família. Estando eu de férias com a minha Avó lá na aldeia, a minha Mãe apareceu de surpresa e sozinha a guiar o carro. Sozinha lá dentro porque atrás do carro eram bandos de miúdos a gritarem "é uma chófera, é uma chófera", correndo pelas ruas de pedra até à nossa porta.
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Um dia o Benfica foi apanhado nas malhas de um médico que resolveu reabilitá-lo, fazê-lo deixar o álcool. Enviado para Lisboa, foi internado no serviço que tratava dos alcoólicos. Tiraram-lhe o vício. Deixou de beber.
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Depois disso passou pela aldeia uma só vez. Numa árvore pendurou uma corda enforcou-se. Tinham-lhe tirado a única coisa que tinha e não lhe tinham dado nada em troca. No dia em que se soube da notícia, ficamos todos mais tristes.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Poema - Pedro Tamen

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Suspendo a mão entre o A e o B,
entre a minha vida e a vida que andará
dentro da minha vida.
E o mundo refloresce
com memórias de rios e montanhas
inundando estes mares de sal e carne
onde me afogo
para respirar.

domingo, 4 de abril de 2010

Aconteceu em viagem - 8 - Marrocos

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Ler tem sido o truque que arranjei para ajudar a passar o tempo enquanto pedalo na bicicleta do ginásio.
Agora estou com "As Vozes De Marraquexe", de Elias Canetti. É um livro de viagem que este Prémio Nobel da Literatura escreveu na sequência de uma ida àquela cidade marroquina em 1952.
Terá sido há cerca de 8 anos que lá estive, numa viagem razoavelmente longa e minuciosa organizada pelo meu primo Paulo, que conhece Marrocos quase como a palma da sua mão.
Aprendi logo à chegada que, sempre que me visse numa situação que eu considerasse perigosa, inquietante e me sentisse insegura, deveria pôr-me numa posição que um árabe, pelo seu código de honra, se sentisse na obrigação de me proteger. Nunca fugir. Fazer por exemplo uma pergunta de alguma coisa que eu não soubesse e lhe permitisse ajudar-me e por isso tornar-se meu protector.
Um dia, estando no deserto, resolvi subir a uma duna e deixei de ver os restantes membros do grupo. Melhor dizendo, não via ninguém, só as dunas com as suas areias douradas, de vários dourados pois a incidência do sol faz variar a cor. E um enorme silêncio. Só, estava mesmo só e isso era uma sensação muito boa.
Sem que eu tivesse tempo de dizer uma palavra, vejo um jovem adulto berbere, turbante azul à volta da cabeça, olhos verdes. Fiquei assustada, eu que me julgava sozinha e de repente...
Estava de maçã vermelha na mão e já lhe tinha dado uma dentada.
A minha primeira reacção foi oferecer-lha, e perguntei-lhe, "tu veux ma pomme?" Ele com uma voz muito doce respondeu-me "je voudrais bien, mais et toi?"
Fiquei emocionada! Eu que estava em hotéis de 5 estrelas, onde havia as maçãs todas que eu quisesse. Ele, ali no deserto, num acampamento, nómada...preocupado comigo, com o facto de eu ficar sem a maçã!
Aceitou-a e guardou-a no bolso. Desci a duna e nunca mais o vi. Assim como apareceu, sumiu.
A leitura do livro transportou-me de novo para Marrocos. Volta não volta lembro-me desta situação.
Foi um episódio tão bonito!