terça-feira, 5 de março de 2013

Acontece...que aprendi há anos que havia o "chuto" da mulher a dias

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Foi no início do meu trabalho em Lisboa. Alguns anos depois da escola, encontrei-a no hospital onde prestava serviço, eu médica e ela doente. Exuberante, ria em voz alta, esbracejava em movimentos largos, por onde passava era impossível não notar. Causava-me incómodo,   tínhamos tínhamos feito o liceu juntas, eu segui no caminho mais ou menos esperado, ela...
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Lembro-me bem, ela a descer as escadas com mais uns internados, todos do mesmo "ramo", seguiam todos os dias de narinas e boca bem abertas, as empregadas da limpeza que usavam para a lavagem das escadarias de madeira ,detergentes, amoníaco e diluentes. Aprendi na altura que se dizia que ali, incapazes de encontrar outro"produto", procuravam com aquela inspiração, obter o "chuto da mulher a dias".
Eu tentava ser transparente, de tão aflita que ficava. Mas embora me cumprimentasse, brevemente, o fim que procurava era mais forte e eu ficava mesmo uma insignificancia ali.
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Voltei a encontrá-la uns anos mais tarde, discreta, a trabalhar muito abaixo da sua formação. Noutro encontro, a sua exuberância voltou a preocupar-me. Não nos víamos muito. Eramos amigas virtuais em duas redes mas raramente sabia dela.
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Morreu hoje, soube esta tarde. É um périplo perigoso, às vezes imparável, vão-se as drogas entra o alcool, vai-se o fígado, por fim os outros orgãos. Vão se os colegas, os amigos, a família. E depois...
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Sofrem os próprios (admito que já tinham sofrido antes disto tudo), mas fazem sofrer os outros. Deixam marcas de sofrimento na família, nos filhos, nos netos que são filhos dos filhos... É a transgeracionalidade,  forma perigosa de perpectuar o sofrimento.
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Já se foi, não fiquei muito admirada, mas as imagens das escadas voltaram à minha memória...
 
 

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Aconteceu...piropo na cadeia, sem prisão

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O título desta fotografia é Piropo.
Català-Roca, fotógrafo espanhol (1922-1998) de quem eu nunca tinha ouvido falar até hoje, ao ir ver uma exposição dele no Centro Português de Fotografia do Porto.
Duas novidades num só dia, uma vez que este centro está situado na antiga Cadeia da Relação, recuperada pelos arquitectos Souto Moura e Humberto Vieira, onde eu também nunca tinha entrado.
Belíssimas obras, as fotografias e o espaço onde estão expostas! 
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Não sei qual foi o piropo que este homem lançou à mulher. Mas lembrei-me que há muito tempo soube de um que ao cruzar-se com uma mulher muito bonita mas muito pequenina segredou: Gosto, vou mandar ampliar.
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Ainda se dizem piropos? 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Aconteceu...no meio de dias de chuva, haver um com sol


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Merece a pena uma visita ao Parque Almorol de Escultura contemporânea.
Um parque grande junto ao rio Tejo, em Vila Nova da Barquinha ganhou um prémio de arquitectura paisagista em 2007.

Verde muito verde pelo tapete, ao lado do azul das águas do Tejo, tem espalhadas várias esculturas de grande porte.
Elegi esta, de José Pedro Croft, 2012. Três paralelipípedos de aço, reflectem o exterior, árvores, relva, céu e o que mais ao seu alcance estiver. Embora estejam fixas, o reflexo varia. Nesta primeira, no céu um avião que passava deixando um rasto recto branco, ganhou curvaturas no aço.
Pela data da escultura, parece ser um parque que se vai construindo, acrescentando novas esculturas.
Muito bonito!

E para quem não leva pic-nic, umas enguias fritas com açorda de tomate ali num restaurante perto, foram um muito bom final.   

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Poema - Manuel António Pina

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O PÁSSARO NA CABEÇA
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Sou o pássaro que canta
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dentro da tua cabeça
que canta na tua garganta
canta onde lhe apeteça

Sou o pássaro que voa
dentro do teu coração
e do de qualquer pessoa
mesmo as que julgas que não

Sou o pássaro da imaginação
que voa até na prisão
e canta por tudo e por nada
mesmo com a boca fechada

E esta é a canção sem razão
que não serve para mais nada
senão para ser cantada
quando os amigos se vão

e ficas de novo sozinho
na solidão que começa
apenas com o passarinho
dentro da tua cabeça.
 
 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Aconteceu...que o homem era invisível!

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Um psicólogo brasileiro trabalhou durante oito anos como funcionário da recolha de lixo para escrever uma tese de Mestrado. Misturou-se, tentou ser igual aos outros mas não conseguiu. Desde logo os colegas perceberam que ele não era exactamente igual a eles e tratavam-no com uma deferência diferente, protegendo-o de certos trabalhos mais pesados ou sujos.
No entanto, verificou que as pessoas que passavam pela rua não reparavam nos homens da limpeza, nem nele nem nos outros, passando sem olhar.  E mais, que pessoas que o conheciam na Faculdade, passavam por ele homem do lixo sem o reconhecer.
"Em geral, as pessoas enxergam apenas a função social do outro. Quem não está bem posicionado sob esse critério, vira mera sombra social". 
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Ao ler o artigo, lembrei-me de como cumprimento sempre que o vejo o jardineiro africano que cuida dos jardins da casa onde passo as férias, sempre bem fardado com as suas jardineiras verdes e o seu chapéu de palha. Trato-o pelo nome, já troquei algumas palavras com ele, que trabalha ali há mais de uma dezena de anos. Há tempos, estando eu no supermercado, vejo um homem bastante bonito, muito bem vestido de fato e gravata que lhe caíam na perfeição, olhar para mim e sorrir. Pensei, mas de onde é que este senhor, me conhece para me estar assim a fixar? Desviei o olhar, mas ele continuava a sorrir-me. Lá olhei com mais cuidado para ele. Acho que demorei uns longos segundos e até exclamar, oh Semedo, eu nem o estava a reconhecer, leia-se nunca o tinha visto assim desta perspectiva! Ele riu e  penso que sentiu a minha deixa como um elogio.
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Depois de ler o artigo atrás referido, fiquei a pensar que até ali ele, homem , tinha sido mesmo invisível para mim.

Nota - o maior intervalo de tempo de sempre entre crónicas. Acontece! 
 

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Aconteceu...está cinzento lá fora, não há sol nem ainda nasceram as estrelas

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"Simplesmente Maria" era o folhetim radiofónico que cerca de 40 anos ouvia quase religiosamente a seguir ao almoço
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Andava eu na faculdade, e como muitos outros colegas do meu curso, frequentava pouco as aulas teóricas. Íamos assistir às aulas práticas e pouco mais. Mais tarde, um mês ou ainda mais antes do exame, entrávamos em "estágio", fechando-nos para o mundo, quase com vendas nos olhos e algodão nos ouvidos para não nos distrairmos, a estudar e na data prevista íamos fazer o exame.
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Bom, mas havia uma excepção nesta maratona do estudo. É que a seguir ao almoço, fechados no quarto de estudo, eu e os colegas com quem me reunia para tornar a tarefa mais dinâmica e suportável, fazíamos uma pausa para ouvir esse folhetim. Eram momentos imperdíveis para nós.
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Sendo uma ouvinte tão assídua, curiosamente não me lembro de toda o enredo nem como acabou a peça radiofónica, mas sim do que sofríamos com a protagonista, a Maria, e com a vida dela. O namorado, de quem teve um filho super apaixonada que estava, sendo ela uma criada de servir e ele um estudante de Medicina, tocar-nos-ia em particular?
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Um destes dias, sintonizada num posto de televisão, percebi o porquê. Deu um programa em que foi falada esta rádio novela, falaram o seu produtor e vários actores, alguns dos quais me lembro de ter identificado a voz na altura. E foi referido que o 25 de Abril aconteceu e ainda a rádio novela estava no ar, mas que continuou até acabar.
Eu percebi então porque não me lembro do enredo todo e obviamente nada de como acabou.
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É que a partir desse dia de 1974, deixei certamente de estar atenta aquela história, e o interesse passou para a nossa História.
Só que o progresso conseguido desde então tem neste ano que agora acaba, levado uma enorme machada, pelas políticas seguidas.
Tristeza!
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Bom Ano, Feliz Ano Novo, Próspero (este voto a ficar fora de moda), Um Óptimo Ano, etc, etc, que não quero ser desmancha prazeres. Saúde, isso sim, e que encontremos dentro de nós o sol, a luz e as estrelas que não vemos cá por fora!

sábado, 1 de dezembro de 2012

Aconteceu...a revolta do gato Néguy hoje 1 de Dezembro, aniversário da Restauração da Independência

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Sábado, dia em que o despertador não precisa de me acordar. Faço-o quando o corpo e a mente pede, abro um olho, depois o outro, mas não me disponho a levantar. Pego no computador e leio os jornais, depois no livro que deixei marcado ao adormecer e por ali me fico saboreando o tempo.
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Mas eis que toca o telemóvel, avisando-me que chegou uma mensagem. Levanto-me devagarinho, quase praguejando por aquela interrupção, pego no telemóvel que tinha deixado na cómoda e ponho-me a ler. Então como é, hoje não se come nesta casa? Assinado Néguy.
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O gato revoltado, sozinho lá dentro à espera, um tempo de jejum que lhe deve parecer insuportável. Lá vou ter com ele e um miau de agradecimento se ouve. É que o meu gato, só sabe escrever como nós, de resto só mia, mas com uma entoação que é como se palavras dissesse.
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Aproveito e tomo também o meu pequeno almoço, posto que, me sento, pronta para ler um artigo técnico e chato, na mesa da sala. Como pano de fundo ouve-se Montserrat Figueras, no seu maravilhoso disco "La voix de l´emotion", disco de homenagem póstuma editado este ano.
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E aqui começa nova revolta do gato. Quer estar ao pé de mim, carente como sempre, mas também quer a réstia de sol que ilumina a mesa, razão pela qual escolhi aquele sítio. Eu e as páginas, bem iluminadas pelo sol que entra pela janela, ele e as mesmas páginas, tentando sentar-se-lhes em cima e receber o sol. Ambos disputamos o mesmo sítio. Digo-lhe que se vá, mia mas não se mexe, empurro-o, mia com entoação diferente mas volta e tapa-me o texto, olhando para mim com ar perplexo mas desafiador.
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Levanto-me, vencida, ando pela casa e ele segue-me como um cão. Vai comigo fazer a minha cama, e depois arrumar a cozinha, miando de vez em quando para que eu não me esqueça que ele está ali.
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Posto o que, volto à mesa e às minhas folhas cheias de letras.
O sol rodou e a mesa ficou à sombra. A música mantém-se, conseguirei agora ler?
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Quanto á minha independência, está visto que o meu gato não má quer dar.