quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Aconteceu...no Serviço Médico à Periferia - 6

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Há imensas acontecimentos que nos inquietam e perante os quais reagimos de forma absolutamente ridícula. Queremos livrar-me de qualquer maneira do incómodo, seja de como fôr, nem que seja um grande disparate.
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Já aqui falei várias vezes da minha experiência médica no início da minha vida profissional, na Beira Alta, durante o Serviço Médico à Periferia. Esta será mais uma história desse tempo.
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Um dia, para azar meu, tenho de acudir inutilmente a uma criança que levaram ao posto de saúde onde eu estava a trabalhar. Foi uma enorme trapalhada, movimentação, choros, gritos e a minha total impotência porque já chegou cadáver.
Foi muito complicado para mim gerir os sentimentos de me confrontar com esta situação.
Mais tarde tive de preencher uma certidão de óbito, também pela primeira vez. Como a criança tinha sido atropelada, pus como causa de morte provável traumatismo ou coisa parecida, não me lembro muito bem. O que sei é que nesse dia à tarde, ia eu na rua e um homem aproxima-se de mim, apresenta-se, era o Delegado do Procurador da Republica lá na terra e informa-me que eu teria no dia a seguir de ir fazer a autópsia ao miúdo.
Juro, má informação minha, mas eu não sabia que isso era uma ordem. Certamente que fiquei aflita, tanto mais quanto achava não saber fazer tal coisa, tinha visto uma e de má vontade durante o curso. Não achei pois melhor resposta do que dizer que não podia porque já estava com um compromisso.
Para a justiça não há outros compromissos, só os dela, e eu vi-me ali numa situação que, percebi depois, seria uma nódoa na minha carreira profissional.
Eu que achava que não ia conseguir. e se ainda estava muito incomodada com a situação que se tinha passado de manhã, como aguentaria uma outra?
Felizmente que uma colega e amiga ofereceu-se e foi autorizada a substituir-me.
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Mas a espontaneidade, coisa óptima em certas circunstâncias, pode, se usada como fuga sem a análise e o conhecimento das situações, ser uma inimiga.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Aconteceu...foto - a janela do 5º andar

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....................................Foto - magda

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Poema - Gonçalo M Tavares

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CONSELHOS INÚTEIS

Não é um roubo retirares da paisagem
uma andorinha ou uma cadeira, mas não é simpático.
Daí a considerares o que digo um convite à imobilidade,
parece-me exagero.
Move-te, sim, mas acrescentando
coisas e assuntos à paisagem onde entras. Eis só.

domingo, 17 de outubro de 2010

Aconteceu...falar para partilhar e pensar ou para despejar, não é a mesma coisa

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E blá blá bli, blá blá blá, a Francisca não se calava. As frases saiam, juntas umas às outras. O discurso era imparável e factual! Coisas actuais, antigas, tudo servia para ela falar. Impossível interromper, fazer um comentário, uma pergunta, um esclarecimento, aprofundar o assunto. Espera, deixa-me contar, dizia, e continuava. Ela queria era falar. Queria ou precisava?
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Um cansaço começava a invadir-me. As palavras dela começaram a misturar-se, parecia que andavam em espiral, do cocuruto da minha cabeça, desciam até quase aos pés, ia ficando pesada, perdendo o sentido às frases e um grande sono a invadir-me.
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Estamos sós naquele canto mas na sala há mais gente. Que vai observando a cena e percebendo que vou entrar num sono comatoso.
E o Pedro aproxima-se pé ante pé e senta-se ao meu lado, como que autorizando-me a adormecer.
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Não sei quanto tempo dormi.
Soube mais tarde que ela não deu pela troca de interlocutor, e continuou a falar, exactamente no mesmo ritmo e continuando no mesmo ponto onde estava quando "falava" comigo.
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Acordei. O Pedro afasta-se e a Francisca continua a falar. Depois diz-me, que bem que me soube, precisava mesmo que alguém me ouvisse.
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Falar para que alguém ouvisse, disse ela, mas deveria ter dito falar para despejar em ti algo incómodo sentia dentro dela. Por isso ficou mais aliviada. E eu cansada, o sono foi a minha salvação! Terei sonhado?

sábado, 16 de outubro de 2010

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Poema - Alexandre O ´Neill

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A VIDA DE FAMÍLIA

a vida de família tornou-se bem difícil
com as contas a pagar os filhos a fazer
ou a evitar a ranhoca a limpar
a vida de família não tem razão de ser
não tem ração de querer

a vida de família jangada da medusa
é o tablado da antropofagia

mas ficam os retratos cristo virgem maria
e os sobreviventes, que vão chupando os dentes

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Aconteceu...vários olhares sobre uma mesma situação

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As cenas transmitidas ontem pela televisão, da libertação dos mineiros chilenos, apareceram numa conversa que hoje tive com jovens.
Foi curioso, todos tinhamos visto. De facto, foi uma situação tão emocionante, que era quase impossível ignorar.
Cada qual sublinhou depois o que mais o impressionou.
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O Tiago, bastante racional e que assim se defende das emoções, referiu que foi fabulosa a actuação da empresa de salvamento, empresa estatal chilena, montada durante o regime de Salvador Allende. Criticou a falta de condições dos mineiros e dos patrões que querem tudo pelo mais barato, mesmo que com menos condições de segurança para os trabalhadores.
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A Inês achou que o mineiro que tinha 19 anos de idade, menos do que a autorizada para trabalhar no interior das minas, devia ser castigado porque tinha mentido. Se lá ficasse teria sido bem feito.
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A Sofia, mostrou-se horrorizada, que ela não teria sido capaz de lá estar, e dizia com uns gestos teatrais e trejeitos na cara que devia estar tudo cheio de minhocas, e de baratas. E começou a falar dos seus medos das aranhas, e como grita logo por alguém quando vê alguma, como ia aguentar lá em baixo?
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O Júlio, falou no medo da morte. Ali sozinho, sem família... o isolamento, com o medo que tem do escuro, não teria aguentado. E ficou em silêncio, talvez assustado só da ideia, mas também à espera do que os outros diriam disto.
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Só faltava o Abílio falar. Conheço-o bem. Frágil e inseguro fartou-se de fazer troça da Sofia e do Júlio. Mariquinhas, menina, ele que começou a querer fazer “parcourt” para vencer o medo e mostrar-se forte aos olhos dos outros! Só que ao fim de poucas tentativas caiu e partiu um pé...
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Há situações em que é normal ter-se medo, porque o medo pode ser uma arma de defesa pessoal.
Foi uma experiência muito complicada pela qual aqueles homens passaram. Claro que são homens habituados a correr perigos, o trabalho deles é um perigo constante pouco ou nada reconhecido pelos empregadores (li que um mineiro no Chile ganha cerca de 300€ por mês, sendo a vida tão cara como em Portugal).
É provável que alguns vivam situações de stress post traumático, com rememoração da situação frequente e de forma incómoda, dificuldade em dormir com sonhos de repetição e outros sintomas.
Mas terá sido muito importante para manter a calma durante o tempo em que estiveram lá em baixo a segurança e confiança que o chefe do grupo soube transmitir.
Tal como um comandante de um navio que está a fundar-se, foi o último a sair.