quarta-feira, 7 de abril de 2010

Aconteceu...excesso de zelo?

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Chamava-se Benfica, e era vagabundo. Andava de terra em terra, com uma sacola de pano na ponta de um pau que trazia ao ombro. Lá dentro todos os seus pertençes. Esmolava sempre bêbado. Pedia comida e sítio para dormir. No cabelo mal amanhado e cinzento, havia restos de palha e de erva que eram marcas da cama da véspera. Enquanto se aguentava em pé era divertido, fazia macacadas que punham as crianças a rir. Em bando corriam atrás dele, imitavam-lhe os gestos. E ele gritava de vez em quando Benfica! E todos se riam.
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Passava pela aldeia da minha Avó e o Quintal de São João que era propriedade dela, era um dos seus poisos. Tinha uma ruína do que em tempos teria sido uma casa e o Benfica achava o espaço muito aprazível.
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Na época, há uns 50 anos, na casa da minha família dava-se comida no prato a quem pedia. Um prato de sopa, algum conduto como se dizia, pão e até vinho e fruta. A loiça usada pelos pobres era depois desinfectada pelas "criadas" com água a ferver. Era assim na aldeia mas também em Lisboa, onde os cegos ainda cantavam na rua e o acompanhante, habitualmente um coxo, apanhava as moedas que lá de cima, do 3º, 4º ou 5º andar se mandavam embrulhadas num papelinho.
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O Benfica aparecia, ficava um ou dois dias e seguia viagem. Sempre bêbado e aparentemente bem disposto. Ou a cair para o lado e a adormecer. Depois ficava-se sem saber dele. Nunca soube se ele tinha uma rota fixa, ou era ao sabor das curvas etílicas que seguia. Sei que voltava sempre e atrevo-me a dizer, era esperado. Ninguém o enxotava, fazia parte da vida da aldeia, onde a passagem de um carro ainda era notícia.
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Teria eu 4 anos quando a minha Mãe tirou a carta e comprou um carocha, DD-38-19, cinzento prateado. Quando falávamos dele dizíamos o Voxinho, como se de uma pessoa se tratasse. Até tinha apelido também, por acaso os meus. Era um personagem importante na nossa família. Estando eu de férias com a minha Avó lá na aldeia, a minha Mãe apareceu de surpresa e sozinha a guiar o carro. Sozinha lá dentro porque atrás do carro eram bandos de miúdos a gritarem "é uma chófera, é uma chófera", correndo pelas ruas de pedra até à nossa porta.
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Um dia o Benfica foi apanhado nas malhas de um médico que resolveu reabilitá-lo, fazê-lo deixar o álcool. Enviado para Lisboa, foi internado no serviço que tratava dos alcoólicos. Tiraram-lhe o vício. Deixou de beber.
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Depois disso passou pela aldeia uma só vez. Numa árvore pendurou uma corda enforcou-se. Tinham-lhe tirado a única coisa que tinha e não lhe tinham dado nada em troca. No dia em que se soube da notícia, ficamos todos mais tristes.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Poema - Pedro Tamen

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Suspendo a mão entre o A e o B,
entre a minha vida e a vida que andará
dentro da minha vida.
E o mundo refloresce
com memórias de rios e montanhas
inundando estes mares de sal e carne
onde me afogo
para respirar.

domingo, 4 de abril de 2010

Aconteceu em viagem - 8 - Marrocos

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Ler tem sido o truque que arranjei para ajudar a passar o tempo enquanto pedalo na bicicleta do ginásio.
Agora estou com "As Vozes De Marraquexe", de Elias Canetti. É um livro de viagem que este Prémio Nobel da Literatura escreveu na sequência de uma ida àquela cidade marroquina em 1952.
Terá sido há cerca de 8 anos que lá estive, numa viagem razoavelmente longa e minuciosa organizada pelo meu primo Paulo, que conhece Marrocos quase como a palma da sua mão.
Aprendi logo à chegada que, sempre que me visse numa situação que eu considerasse perigosa, inquietante e me sentisse insegura, deveria pôr-me numa posição que um árabe, pelo seu código de honra, se sentisse na obrigação de me proteger. Nunca fugir. Fazer por exemplo uma pergunta de alguma coisa que eu não soubesse e lhe permitisse ajudar-me e por isso tornar-se meu protector.
Um dia, estando no deserto, resolvi subir a uma duna e deixei de ver os restantes membros do grupo. Melhor dizendo, não via ninguém, só as dunas com as suas areias douradas, de vários dourados pois a incidência do sol faz variar a cor. E um enorme silêncio. Só, estava mesmo só e isso era uma sensação muito boa.
Sem que eu tivesse tempo de dizer uma palavra, vejo um jovem adulto berbere, turbante azul à volta da cabeça, olhos verdes. Fiquei assustada, eu que me julgava sozinha e de repente...
Estava de maçã vermelha na mão e já lhe tinha dado uma dentada.
A minha primeira reacção foi oferecer-lha, e perguntei-lhe, "tu veux ma pomme?" Ele com uma voz muito doce respondeu-me "je voudrais bien, mais et toi?"
Fiquei emocionada! Eu que estava em hotéis de 5 estrelas, onde havia as maçãs todas que eu quisesse. Ele, ali no deserto, num acampamento, nómada...preocupado comigo, com o facto de eu ficar sem a maçã!
Aceitou-a e guardou-a no bolso. Desci a duna e nunca mais o vi. Assim como apareceu, sumiu.
A leitura do livro transportou-me de novo para Marrocos. Volta não volta lembro-me desta situação.
Foi um episódio tão bonito!

sábado, 3 de abril de 2010

Poema - Nuno Júdice

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GUIA DE CONCEITOS BÁSICOS
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Use o poema para elaborar uma estratégia
de sobrevivência no mapa da vida. Recorra
aos dispositivos da imagem, sabendo que
ela lhe dará um acesso rápido aos recursos
da sua alma. Evite os atolamentos
da tristeza, e acenda a luz que lhe irá trazer
uma futura manhã quando o seu tempo
se estiver a esgotar. Se precisar de
substituir os sentimentos cansados
da existência, reinstale o desejo
no painel do corpo, e imprima os sentidos
em cada nova palavra. Não precisa
de dominar todos os requisitos do sistema:
limite-se a avançar pelo visor da memória,
procurando a ajuda que lhe permita sair
do bloqueio. Escolha uma superfície
plana: e deslize o seu olhar pelo
estuário da estrofe, para que ele empurre
a corrente das emoções até à foz. Verifique
então se todas as opções estão disponíveis: e
descubra a data e hora em que o sonho
se converte em realidade, para que poema
e vida coincidam.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Aconteceu...enquanto se espera

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A "literatura" das sala de espera dos serviços de saúde é frequentemente pouco cuidada. É raro ter alguma qualidade, resumindo-se aos jornais gratuitos diários na maioria dos hospitais privados, revistas vulgares, de pouca qualidade, na maioria dos consultórios. No meu serviço, num hospital público, são os técnicos que levam as revistas depois de lidas em casa o que faz com que o stock seja mais ou menos renovado.
Às vezes há uns incidentes curiosos, pois por distracção e pouco cuidado também, reparamos um dia com uma revista com conteúdo tratado de forma sensacionalista que poderia perturbar os nossos utentes. Foi prontamente retirada.
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A sala de espera da clínica de fisioterapia onde fui esta semana estava cheia de doentes. É exígua, tem uma fila de cadeiras fixadas às paredes laterais deixando um corredor estreito onde uma cadeira de rodas eléctrica não cabe. Lá no alto uma televisão acesa mas sem som. Só um dos lados da sala a pode ver, arriscando-se a ficar com um torcicolo e necessitar de mais sessões. Senti-me claustrofóbica, perguntei quantas pessoas estavam à minha frente e saí. Quando volto já há lugar. Uma mesa pequena, também na continuidade das cadeiras, tem algumas revistas. Escolho uma e ponho-me a folhear. É de viagens e tem boas fotografias e convites para passeios e férias. As revistas estão com bom aspecto mas alguma coisa estranha me chama a atenção. Demoro um pouco a perceber. Depois reparo nos preços, pois é, estão em escudos. Procuro a data da revista - 2001. Pego noutra e vejo que é da mesma idade. A mais recente era de 2003. Grandes relíquias!
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A sala de espera, assim como o atendimento pela funcionária que o acolhe, é o primeiro contacto do utente com o serviço. É desejável não esperar muito tempo na sala. Mas enquanto se está que se tenha uma sensação de estar a ser acolhido, como se a um porto seguro se tivesse chegado. Então sim, poderemos pensar, dormitar, tentar conhecer os colegas de espera, ler, ...
Será pedir muito?