quarta-feira, 31 de março de 2010

Poema - Eugénio de Andrade

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Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.
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Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.

terça-feira, 30 de março de 2010

Aconteceu... num programa de cultura

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Momento subversivo pela desconstrução da lógica vigente e esperada, aconteceu já há bastante tempo num programa Câmara Clara da RTP2 da Paula Moura Pinheiro.
Porque o revi e me diverti novamente, aqui está, com Alberto Pimenta e Vitor Silva Tavares

segunda-feira, 29 de março de 2010

Aconteceu...no Serviço Médico à Periferia - 4

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Não conhecia aquela doente. Era a primeira vez que vinha ao posto depois da minha chegada. Iamos começar, tal como com todos os outros, eu a conhecê-la e ela a descobrir a doutora novinha que veio lá de Lisboa. Falhamos ambas.
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Durante muitos anos aquele posto clínico tinha estado fechado por não haver médicos colocados. A não ser o local, que morava na vila a uns poucos quilómetros de distância de onde nos encontravamos e que tinha o seu consultório particular no 1º andar esquerdo de um prédio de rés-do-chão e primeiro. Porque estou com estes pormenores? É que o 1º andar direito era o posto da caixa. A partir de certa altura ele não trabalhava na caixa e quem queria virava-se para o outro lado do patamar e ia ao privado.
Ao contrário de certos colegas a que normalmente chamamos de João Semana e em quem vemos qualidades de dedicação e empatia, generosidade extrema, que chegam a exercer a medicina quase como se de um sacerdócio se tratasse, aquele era arrogante e omnipotênte. Tinha tudo e todos na mão e não gostou nada que as colegas tivessem sido colocadas durante um ano na sua terra e a fazer a volta pelos vários postos existentes. Via nisso um perigo para o seu feudo privado. Ele e a mulher que o secretariava no consultório e sussurrava (às vezes bem alto) que aquelas doutoras de Lisboa deviam ser comunistas. Onde foi arranjar aquela ideia não sei, mas era uma boa forma lá para aquelas bandas, de tentar criar um clima de insegurança com rejeição. Não conseguiu, felizmente, que a pouco e pouco caimos nas graças da população.
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Dizia eu que não conhecia a doente. Não me lembro porque foi à consulta, mas fiz como é da prática, depois de um introito social, uma escuta para recolha do motivo da consulta, sintomas e os antecedentes pessoais. Faltava a observação directa.
Ainda na secretária pedi à senhora que esticasse o braço, com a manga arregaçada e medi-lhe a tensão arterial. Em seguida pedi-lhe que se sentasse na marquesa depois de despir a camisola para eu a poder auscultar. O que eu fui pedir... Quase de imediato a doente pôs-se em pé e aos gritos dirigiu-se para a porta. Era o que faltava, vêm estas de Lisboa e mandam despir uma pessoa! O Dr. J. sempre me auscultou por cima do casaco, era o que faltava, a mim não me apanha cá mais!
E saiu continuando a vociferar contra as modernices de Lisboa.
Nunca mais a vi.

sábado, 27 de março de 2010

Poema - Armando Silva Carvalho

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MEIO-DIA, severo e uno, sol duro.
As mães cruzam com os filhos
À hora de repartir
A justiça.
Os corpos sabem da separação
E não conseguem falar.
As mãos fazem e desfazem
Os jogos.
O cérebro reflecte o sol,
O rigor da ciência,
A lúcida tristeza, a exacta natureza
Da lei.
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Caminhamos ao lado do mundo
E não aceitamos
Este sol
Impiedoso da verdade.
E vamos a meio do rio, destacados
E nítidos.
A erva já não canta, e de manhã cantava
A inocência.
A luz cega agora os passos
Que parecem dançar à beira dum passado
Pessoano,
Fluentes, independentes,
Pós-modernos.
Aqui à beira do sol fixo
Como uma planta asfixiada pela luz
Que lhe dá vida.
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Armando Silva Carvalho

sexta-feira, 26 de março de 2010

Aconteceu...que apareceu

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Como não esperava que o jovem Leandro que se atirou ao Rio Tua aparecesse com vida, foi com alívio que soube que o corpo tinha sido encontrado.
São imensas as histórias que conhecemos de pessoas de quem apesar de certamente mortas, o corpo nunca apareceu. Conheço até algumas famílias que durante anos receberam telefonemas silenciosos em dias especiais, como o aniversário ou o Natal, o que as fez ter sempre a ilusão de que o desaparecido não morreu e manter viva a esperança de um dia o poderem abraçar.
O aparecimento do corpo e as cerimónias de culto habituais, sejam elas quais forem, são importantes para se poder iniciar o trabalho de luto.
Que será sempre incompleto, quando se trata de um filho.
Como dizia uma mãe a quem morreu um filho, numa definição muito correcta, é uma doença crónica com a qual se terá de viver para sempre.