terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Aconteceu...no Serviço Médico à Periferia – 2

.
Ao jantar, a auxiliar de acção médica pôs o tabuleiro na mesa de apoio e levantou a tampa do prato aquecido para eu ver o bom aspecto da comida. Pergunto-lhe com alguma ironia se não há vinho para acompanhar o piteú, ao que ela me responde com um ar muito sério que “no hospital não se serve vinho” e aponta-me para a garrafa de água de Fastio que está a meu lado na mesa-de-cabeceira.

O meu pensamento transporta-me de imediato para o meu Serviço Médico à Periferia.

Uma vez que Moimenta da Beira não tinha hospital, as urgências eram feitas em Armamar, vila situada bem em cima do rio Douro. O hospital, oferecido por um “brasileiro” da terra era um bom edifício e razoavelmente equipado. Enfermarias para cerca de 50 doentes, homens e mulheres, salas de cirurgia, de dentista, de radiologia, e maternidade.
As enfermeiras eram religiosas. Havia também um funcionário sem formação específica que às vezes era porteiro, outras vezes auxiliar de acção médica e que também conseguia fazer radiografias a ossos longos em pessoas magras. Médicos seniores, nenhum, só nós os policlínicos, P3 como nos alcunhávamos, no 3º ano depois de ter acabado a licenciatura e no 1º com autonomia clínica.
Como devem perceber, não eram usadas parte das potencialidades existentes no hospital.

No meu 1º dia de urgência, tive de internar 5 doentes. Nenhum dos casos que internei era grave, mas as distâncias e os poucos transportes levava-nos a deixar no hospital estes casos com a finalidade de fazer algum tratamento que noutras condições se faria em ambulatório.

E ao recolher os dados clínicos, a todos perguntei sobre os seus hábitos alcoólicos. Bebiam todos um garrafão por dia. Perante tal coincidência e mais uma vez pela minha falta de cultura local, optei por pensar que "garrafão" era um regionalismo. Longe de mim saber que da jorna faziam parte 5 litros de vinho que eram bebidos durante o trabalho!

Essa noite não poderá nunca ser esquecida. Os tais doentes do garrafãozinho entraram todos em estado de privação, com agitação psicomotora, estado confusional, tremor, um deles teve mesmo alucinações, enfim, quadros de delírium tremens. Um, grande e forte, tentava apavorado, em pé em cima da cama, apanhar bichos que só ele via na parede.E todos no mesmo quarto!

Eu e a minha colega, que embora não estivesse de urgência me fazia companhia, uma agarrada ao telefone a pedir indicações a um colega da psiquiatria, a outra a fazer cumprir as instruções, lá conseguimos sedar os doentes e resolver a situação.

Escusado será de dizer, claro está, que ficou instituído a partir desse dia “dieta alcoólica” para certas pessoas, um copo de água cheio de vinho a cada refeição.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

aconteceu hoje - 1

.
Talvez por estar a ler o 2666, puseram-me no quarto 206. Era o número que emparelhava melhor.
.
O desenho do Vicente já não está cá,.
O novo gesso todo branquinho aguarda outro momento de inspiração.

Poema - João Farelo

.
ESPERANÇA

Será a esperança uma ilusão
Neste mundo em destruição,
Ou é a esperança algo real
Em que valha a pena acreditar.
Será...a motivação para mudar?
Ter esperança é ter fé;
Acreditar na mudança;
Pois o estado constante
Ganha demasiada importância,
Esperança é algo Universal
Sentida por todos como tal.
Todos têm a esperança
Que se deixe de matar
Pois a esperança é acreditar
Que cada dia que passa
O homem luta e desespera
Para melhor se compreender
Pois não há dúvida alguma
Que a esperança é a última a morrer!

João Farelo (1980-2001)

Este poema foi-me enviado pela Maria Vírginia Varela de quem postei O Tempo no dia 22 Dez 2009.
Dizia no pequeno texto que me fez chegar (...)"poesia escrito pelo João, poucos meses antes de partir. Publica-o em sua memória e em homenagem ao seu pai Mário Nuno, meu grande amigo de sempre."

domingo, 3 de janeiro de 2010

aconteceu estar a ler - 1

.
(...) "Escolhia A Metamorfose em vez de O Processo, escolhia Bartleby em vez de Moby Dick, escolhia Um Coração Simples em vez de Bouvard e Pécuchet, e um Conto de Natal, em vez de Um Conto de Duas Cidades ou de As Aventuras Extraordinárias do Sr. Pickwick. Que triste paradoxo (...).
(...) Já nem os farmacêuticos ilustrados se atrevem com as grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminho no desconhecido. Escolhem exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou, o que é a mesma coisa, querem ver os grandes mestres em sessões de esgrima, mas com combates a sério, nos quais os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que nos atemoriza a todos, esse aquilo que nos acobarda e verga, e há sangue, feridas mortais e fetidez." (...).
.
Imagem retirada da net
.

No Inimigo Público de 9 de Outubro 2009 pôde-se ler:

“Dois mil seiscentos e sessenta e quantos?”
“Intelectuais pedantes não gostam que o título seja “2666””
“A Bola garante que Jorge Jesus seja Roberto Bolano”
“Código do cartão multibanco da maioria dos portugueses é 2666”
“ TVI ainda não sabe como enfiar à má fila referências a Roberto Bolano nos “Morangos com Açúcar””
“ Figuras públicas pediram reforma antecipada para ler 2666”

A mim bastou-me ser Natal, oferecerem-me o livro e ter muito tempo livre pelo pé partido que me obriga à imobilidade.

Da leitura hei-de ir dando notícias, mas sem saber sempre para onde se vai, ora com tonalidade mais depressiva ora irónica, a leitura é agradavel e prende. O livro é que é um tijolo pesado e pouco prático. Vou na página 271.



sábado, 2 de janeiro de 2010

aconteceu no Serviço Médico à Periferia - 1

.
Faz hoje 30 anos que iniciei o Serviço Médico à Periferia (SMP), numa vila do norte frio de Portugal, a mais de 300 quilómetros de distância e por más estradas.

Para quem não sabe o que isso foi, direi que foi uma tentativa de dotar de médicos zonas pouco ou nada cobertas na área da saúde. Era no 3º ano depois terminado o curso de medicina e antes de se iniciar a formação para especialista, e tinha a duração de 1 ano.

A colocação era feita por escolha voluntária de uma terra e depois por sorteio quando o número de inscritos ultrapassava as vagas. Nesse dia a sorte não estava do meu lado e fui saltando de terra em terra até ficar lá longe de Lisboa, numa terra da qual nunca tinha ouvido falar.
Li depois bastante sobre esta zona, também conhecida por Terras do Demo, uma vez que Aquilino Ribeiro por ali nasceu e muito escreveu sobre ela.

Eu e uma colega, que nos conhecíamos relativamente pouco, saímos de Lisboa, comigo a guiar, com o espírito de quem vai para uma missão, obrigatória, quiçá para ambiente de guerra.

Passei por casa dela para a buscar e a mãe confidenciou-me que tinha estado para chamar o médico porque a filha de noite só vomitava e sentia que ia morrer…

A viagem fez-se em silêncio.

Os psicanalistas que interpretem, mas em vez de irmos parar a Moimenta da Beira, no distrito de Viseu, fomos parar a Aguiar da Beira, distrito da Guarda. Encontramos uns grandes pedregulhos e ficamos aliviadas ao fazer os quilómetros que nos separavam do verdadeiro destino, supondo que teria de ser melhor.

Fomos para lá obrigadas, mas ao fim de pouco tempo estávamos integradas. Aprendemos a gostar das coisas simples da vida, das gentes, das comidas, das paisagens, das festas populares. Fizemos amigos que se mantêm até hoje.
O regresso, um ano depois também foi triste, uma parte de nós ficou por lá.

E tal como no filme que referi no escrito de ontem, e a propósito das diferentes linguagens, vou recordar um doente que vi no 1º dia de consulta. Começou por me dizer que a razão da consulta era por “ir muito ao campo”. Lisboeta que sou, e jóvem que era, não achei que isso fosse muito grave e fiz-lhe ver as vantagens do campo e do ar puro. Ao que ele me disse que eu não teria percebido bem, e quis ajudar-me dizendo que “dava demais do corpo”.
Iinterrompi a consulta e fui perguntar à senhora enfermeira que me dissesse qual o significado destas frases, e depois do o saber pareceu-me óbvio, o homem estava com diarreia!

Lição nº 1, passar a estar atenta às diferentes formas de denominar as mesmas coisas, e à cultura local, o que só nos enriqueceu
.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

aconteceu...um filme "Bem-vindo ao norte" - 1

.



Hoje estive a ver o filme "Bem-vindo ao Norte", com título original de "Bienvenue chez les Ch'tis", realizado por Dany Boon.

Comédia que me fez sorrir e até rir.

Trata-se da ida de um funcionário dos correios para o norte de França, local com cultura e linguagem diferente. Contrariamente ao esperado ele adaptou-se com muito prazer e uma excelente integração.

Ainda bem que vi o filme na versão original, em francês e sem legendas. É que a tradução, conforme se pode ouvir nesse pequeno extrato do youtube, não transmite toda a confusão que um sotaque diferente pode criar.

Bartoon - 1º de Janeiro 2010

- Este dia 1 de Janeiro tem as suas vantagens
- Que vantagens?
- As pessoas costumam acordar muito mais tarde
- Dá menos tempo para as coisas correrem mal